Ao receber o dossiê sobre a disseminação da covid-19 (coronavírus) entre os povos indígenas do Amazonas e Roraima, entregue nesta terça(19) pela Frente Amazônia de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas, o presidente da CPI da covid, senador Omar Aziz (PSD-AM), manifestou uma preocupação.
É que o relatório final enquadrasse o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), no crime de genocídio contra os povos originários do Brasil. O relator Renan Calheiros (MDB-AL) deve mudar o enquadramento para crime contra a humanidade.
“A CPI vai demonstrar tudo de ruim e perverso que o presidente da República fez durante a pandemia. Todo o seu negacionismo contra a ciência, o não uso da máscara em público, as motociatas pelo país a fora e todo o tipo de constrangimentos que levaram à morte dessas mais de 660 mil pessoas. Mas, não temos como enquadrar o presidente em crime de genocídio porque não foi premeditado, organizado, planejado”, disse Aziz.
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Dessa forma, o presidente da CPI pediu às entidades da frente e aos deputados federais presentes ao ato de entrega do dossiê argumentos técnicos para a tipificação do crime de genocídio.
A coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), usou os argumentos do tratado de Roma, que serve de base para os julgamentos do Tribunal Internacional de Haia.
De acordo com a parlamentar, todas as ações do presidente Bolsonaro levam, incluindo a invasão a terras indígenas, à falta de política pública para dar segurança alimentar e à saúde das populações atingem o coletivo, o adoecimento até a morte, neste caso, pela covid.
“Existe uma pressão muito grande para tirar a configuração de genocídio do relatório da CPI, mas todas as informações claras, nesse sentido, foram encaminhadas à comissão tanto pela Frente Parlamentar Indígena quanto agora no dossiê da Frente Amazônia de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas. Agora, é aguardar as providências a serem tomadas. Eu espero que a CPI aja com coerência e todas as discussões acumuladas e documentos que receberam ajudem a configurar todos os crimes que Bolsonaro praticou”, disse Joenia.
Descaso do governo federal
Presente ao ato de entrega do dossiê, o vice-coordenador da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, José Ricardo (PT-AM), ressaltou que nesta pandemia, os povos indígenas foram e continuam sendo contaminados e morrendo por muitos descasos, principalmente, do governo federal.
“Esse relatório da frente é muito grave. São quase mil indígenas mortos e milhares que ainda sofrem as consequências da covid, com a falta de assistência, falta de segurança e isolamento por parte do poder público. Nesse documento, tem relatos de várias situações graves envolvendo os povos da região amazônica, que a frente chega a chamar de tentativa de extermínio. Não podemos ficar calados frente a esses descasos e cobramos responsabilizações”.
O parlamentar do Amazonas lembrou do esforço para a vacinação de todos os indígenas contra a covid, além da cobrança para o cumprimento da promessa do hospital de campanha indígena, que nunca existiu, além de uma ala em hospital de difícil acesso.
O deputado integra, desde 2018, ainda como estadual, a Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas. Ele é um dos que assinam o dossiê.
Violações dos direitos
O relatório da frente indígena entregue à CPI denuncia violações dos direitos indígenas no Amazonas por ação ou omissão do governo federal, diante da disseminação da covid entre os povos da região.
De acordo com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), até maio de 2021, foram registrados 38.566 casos confirmados, 557 casos suspeitos e 932 falecimentos de indígenas pela covid na região amazônica. Desses óbitos, 316, ou seja, um terço, ocorreu no Amazonas.
As entidades cobraram que a investigação envolva todos os agentes públicos que deram causa ao novo extermínio dos povos indígenas no Amazonas e em todo Brasil, além de exigir que sejam apuradas as responsabilidades e encaminhadas para os órgãos competentes, para responsabilização criminal e administrativa dos agentes, como ainda que o documento seja incluído no relatório final da CPI.
Distribuição de medicamentos ineficazes
Na visão do secretário-executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), Antônio Eduardo de Oliveira, a questão indígena tem que constar no relatório final da CPI. Principalmente, pela falta de providências do governo federal e da intenção, a partir de uma política de desintegração dos povos indígenas, com a distribuição de medicamentos sem comprovação científica, (hidroxicloroquina, ivermequitina), que levaram a um processo de genocídio principalmente com relação à população de pouco contato.
“Por isso, achamos que precisa ser denunciado na CPI com ênfase na tentativa de genocídio dos povos indígenas do Brasil”, disse.
Amazonas sofreu muito na pandemia
Ao lembrar que o Amazonas é um estado que tem uma grande população indígena, a qual tem sofrido bastante com a pandemia de coronavírus, a presidenta da Adua (Associação dos Docentes da Universidade Federal do Amazonas), Ana Lúcia Gomes, destacou que esses povos deveriam receber um cuidado maior, considerando as condições com que se apresentam.
“Por isso, a questão indígena deveria ter esse cuidado especial. Evitar pessoas acessarem essas localidades onde vivem porque as doenças para os indígenas têm um significado diferente do que para nós, brancos. Então, é importante mostrar o quanto a nossa população indígena está sendo afetada não somente pela pandemia, mas pelo descaso desse governo. Estamos unidos tentando defender a população indígena do Amazonas e do Brasil”.
Mortes e dados alarmantes
O relatório da frente indígena traz a situação do povo ianomâmi, da região do rio Negro, no Amazonas. São mais de 23 mortes registradas por covid e outros 1,2 mil casos confirmados de infecção por causa da invasão de garimpeiros ilegais. Além disso, colaboram a não testagem de todos os funcionários públicos que entram na área e um plano de contingência ineficiente, com graves falhas na sua elaboração.
Também trata do povo indígena juma, no município de Canutama, no Amazonas, onde, no dia 17 de fevereiro de 2021, faleceu Aruká, o último ancião desse povo, vítima da covid.
“Ele foi contaminado na própria aldeia, pois não foi feita ‘barreira sanitária’ para impedir a entrada do vírus”.
Outra denúncia diz respeito aos indígenas do vale do Javari, onde existe a maior concentração de povos isolados no mundo. Mas, também, de outros povos isolados no Brasil: ianomâmi, guajajara, ituna/itaitá, uru-eu-wau-wau, piripkura, pirititi e ilha do Bananal.
Essas etnias sofrem com as constantes invasões nas suas terras, encorajadas pelo governo federal, sendo vítimas da propagação da covid, o que pode provocar o genocídio entre esses povos.
“Os povos chamam a atenção para a falta de capacidade operacional das frentes de proteção da Funai, sem recursos humanos e materiais adequados para desempenhar de maneira eficiente a fiscalização e proteção, a integridade territorial e a segurança sanitária aos povos indígenas isolados”, diz o documento.
Interferências de fundamentalistas
No dossiê, constam ainda casos de interferências diretas de alguns missionários/religiosos fundamentalistas, que tentam fazer manipulação das mentes indígenas, deixando-os resistentes à vacinação, com a utilização de falsos argumentos.
Assim como a exclusão e o descaso do governo federal com indígenas residentes em áreas urbanas e terras indígenas não demarcadas, causando centenas de mortes; e a morte em série de indígenas kokama residentes no alto rio Solimões por falta de medidas de proteção e sem atenção dos governos. E conclui: “Parece que somos só números, só estatística, contagem de mortos e de doentes”.
Encaminhamentos e providências
Ao final do ato, Aziz prometeu encaminhar o documento ao relator Calheiros para que os casos de covid que atingiram os indígenas do Amazonas sejam incluídos no relatório final. O parecer de Calheiros começou a ser lido hoje (20) e deve ser votado no próximo dia 26.
“O importante é que criamos na CPI uma subcomissão para acompanhar todas as investigações junto ao Ministério Público e cobrar das autoridades e instituições que as providências sugeridas sejam implementadas”, disse Aziz.
Foto: Ariel Costa/divulgação