Durante quase oito horas, o pastor André Mendonça encenou o papel de jurista terrivelmente laico.
Das 9h31 às 17h26 de quarta-feira, ele prometeu não misturar a Bíblia com a Constituição. A performance garantiu os votos que lhe faltavam para assumir uma cadeira no Supremo.
Aprovado pelo Senado, o futuro ministro suspendeu o teatro. Às 19h46, já voltou a discursar como se estivesse no púlpito.
“Glórias a Deus por essa vitória. É um passo para um homem, um salto para os evangélicos”, congratulou-se.
O Neil Armstrong de Miracatu não pisou na lua, mas chegou ao olimpo do Judiciário. Sua escolha representa mais um pontapé do bolsonarismo nas instituições. Pela primeira vez, um presidente usa a indicação ao Supremo como arma de barganha eleitoral.
A nomeação de Mendonça tem um objetivo claro: engajar bispos e pastores na campanha à reeleição.
Com a popularidade em queda, Jair Bolsonaro precisa recuperar força entre os evangélicos. Em 2018, ele recebeu sete em cada dez votos do segmento. No último Datafolha, apareceu apenas quatro pontos à frente de Lula entre os fiéis.
O lobby religioso jogou pesado para emplacar o ministro “terrivelmente evangélico”.
Como informou Lauro Jardim, as igrejas mobilizaram oito jatinhos para levar senadores a Brasília. O pastor Silas Malafaia, que trocou Eduardo Cunha por Bolsonaro, ameaçou retaliar quem votasse contra o indicado.
O tempo dirá como Mendonça vai se comportar no Supremo, mas seu histórico fala mais que o discurso ensaiado para a sabatina.
Como advogado-geral, ele pôs a religião à frente da ciência e da lei. Numa fase crítica da pandemia, tentou derrubar decretos que vetavam aglomerações em templos. Chegou a dizer que os cristãos estariam “dispostos a morrer” pela fé.
Além de abraçar o negacionismo, o pastor liderou investidas autoritárias do governo.
Usou a Lei de Segurança Nacional contra jornalistas e acionou a PF para constranger críticos do chefe, a quem se referia como “profeta”. Ele ainda tentou liberar operações policiais em universidades. O pretexto: combater o “viés ideológico” de professores.
Ao chancelar o novo indicado de Bolsonaro, o Senado permite que ele dê mais um passo no plano de domesticar o Supremo, cujos ministros já chamou de “imbecis”.
Leia mais na coluna de Bernardo Franco Mello em O Globo
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Foto: Alan Santos/PR