Coisas da mesa
Publicado em: 27/03/2014 às 00:00 | Atualizado em: 27/03/2014 às 00:00
Ivânia Vieira*
As conversas são alegremente desencontradas. Todos falam ao mesmo tempo. A música de sucesso grita sem melodia. A letra diz tudo, arranca delírios da multidão, para traduzir o nada. Sim, traduz algo em três, quatro letras que a maioria canta-gritando ou quem sabe grita-cantando em movimentos frenéticos. Está pronto o sucesso, contabilizado os acessos e formatada a audiência. Está pronto um dos estilos de maior êxito da vida hoje. É volátil mesmo.
Da mesa, alguém grita cortando por segundos a conversa desconversada. Doenças, remédios, fofocas, impressões do certo e do errado são espalhadas entre goles de bebidas variadas, sem combinação, e petiscos igualmente misturados. Anúncio de vida nova chegando e prenúncio da morte se espreitando. “vamos brindar”, pede alguém para, em seguida, filosofar: “ninguém sabe o dia de amanhã”. O brinde é brindado, risadas, e as conversas reiniciam.
Uma mesa farta de intenções e de atitudes. O Brasil passa sobre ela, reinterpretado. A maioria condena o “Bolsa Família”. Está convicta que o programa do Governo Federal criou uma multidão de pobres preguiçosos que não quer mais lavar loucas nas casas e nos bares, não aceita mais trabalhar em casa de família, nem fazer faxina porque agora têm o dinheiro da bolsa. Nessa mesa, esse Brasil traçado por eles e elas não tem jeito, é só corrupção. O retrovisor por onde olham é o do dos Estados Unidos. Ali, sim, as coisas funcionam, afirmam.
Alguém grita de novo: “Pera lá! Essa história não está bem contada. O que você está fazendo para as coisas funcionarem por aqui? Quem foi que disse que nos EUA tudo é certo, funciona? Vai ficar contemplando de longe?” Uma nova rodada de opiniões ásperas e simultâneas é inaugurada, mais bebida, mais petisco. E entre as avaliações do Brasil e dos Estados Unidos, os conversadores da mesa revelam como foram espertos em burlar o trânsito, a fila do banco. Um mediador tenta se colocar: “Se é assim que tentamos melhorar o País, tá difícil, não é gente?” Já não é ouvido porque o som da conversa desafia o som da música e os dedos teclam a telinha do celular buscando novas postagens de vídeos engraçados, preconceituosos, irônicos, satíricos para mostrar à turma da mesa. É o nosso cotidiano enunciando nossa cidadania, nosso jeito de fazer política e nossas formas de participação.
*A autora é jornalista e professora no Curso de Comunicação Social da Ufam.