A canhota

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 26/10/2010 às 00:00 | Atualizado em: 26/10/2010 às 00:00

Ilustrução: Myrria

Neuton Corrêa*

Esta semana, no Executivo 850 (Mutirão), fiquei impressionado com uma incrível habilidade de uma passageira. O businho (era um micro-ônibus) estava lotado (na verdade, superlotado) quando ela entrou. Eu estava sentando nos primeiros assentos, na entrada do ônibus, e, por isso, tive a intenção de me levantar para lhe ceder a vaga. Mas não pude fazê-lo.

Contive-me em dar-lhe a micropoltrona, não por falta de educação ou de cidadania. Não! É que eu estava espremido entre a parede do veículo e a bunda esquerda de uma passageira, cujo corpo ocupava toda a cadeira dela mais um terço da minha. Ensaiei um impulso para levantar, mas pensei que a operação incomodaria os passageiros que estavam em pé, pendurados no corrimão do teto.

Imaginem uma carreta com três vagões tentando estacionar na avenida Djalma Batista em hora de trânsito congestionado. Seria exatamente isso que você está pensando que aconteceria. Pior. Pior porque ela teria que se levantar, engatar marcha à ré; depois para frente; em seguida, para trás, de novo; e para frente outra vez, até que eu saísse da garagem para dar minha vaga para a mulher do braço esquerdo se sentar.

Ainda bem que o cobrador apresentou a solução para que ela não ficasse ali se equilibrando, apoiando-se apenas com o lado esquerdo do braço. Ele pediu que a mulher sentasse sobre o capô do veículo. Ela, prontamente, acomodou-se lá para exibir suas habilidades com o membro superior esquerdo.

A passageira começou o espetáculo tirando, com a mão esquerda, a bolsa vermelha que estava pendurada no lado direito do ombro. Tirou-a e a colocou sobre as coxas e, com a ajuda dos membros inferiores, apertou-a contra a barriga para ganhar apoio e, com a mão esquerda, puxou o zíper no sentido esquerda-direita. Revirou ali dentro algumas coisas e de lá tirou uma revista.

Como estava muito perto de mim (não dava mais de um metro), estiquei a cabeça para ver o nome da publicação. Para sorte de vocês, amigo e amiga do busão, consegui captar o título. Era uma revistinha da Natura com as páginas riscadas. Sinceramente, achei incrível sua habilidade para folhear a revista só com a mão esquerda.

A parte mais fantástica foi quando ela não conseguiu revirar a revista para as páginas finais. Primeiro tentou usar a ajuda da barriga, depois apoiou-a na borda da bolsa, na sequência, colocou-a no queixo e, finalmente, encontrou um jeitinho: deixou a revistinha sobre o antebraço e pelas pontas dos dedos chegou aonde queria chegar.

Fiquei com a imagem na cabeça até hoje. Desci do Executivo 850 lembrando das cenas e decido a repetir tudo o que ela havia feito para ler a revista usando apenas a mão e o lado esquerdo do braço: com ajuda da barriga (a minha já está bem saliente), consegui folhear um livro mais ou menos com as mesmas dimensões da revista da Natura; abri folhas aleatórias, mas também não acertei abrir as páginas finais; usei o queixo e foi pior ainda, eu estava com a barba por aparar. Aí é que a coisa só fazia deslizar.

Também tentei folhear o livro usando meu antebraço para abri-lo com as mãos do mesmo lado. Foi um desastre.

Bem, quando estávamos chegando à avenida Djalma Batista, a passageira de bunda avantajada levantou-se. A mulher da revista, na hora, sentou-se ao meu lado. E, assim que se acomodou, o celular dela tocou no bolso esquerdo de sua calça e, com mão esquerda puxou o aparelho cotovelando meu rosto. Assim que desligou o aparelho, olhou para mim e disse:

– Desculpa, moço, é que eu sou canhota.

*Filósofo e escritor.

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