As conversas de dona Ana

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 15/06/2010 às 00:00 | Atualizado em: 15/06/2010 às 00:00

Ilustração: Myrria

*Neuton Corrêa

Dona Ana está em Manaus. Vai visitar a filha que mora no Município de Presidente Figueiredo. Disseram-lhe que fica perto da capital. Por isso, ela me procurou. Quer que a deixe lá de carro. Informei que só ando de ônibus. Ela riu! Mesmo assim insistiu: “Então, me deixe lá agora!”. E eu, pensado que posso aproveitar a passagem dela por aqui, expliquei: “Dona Ana, Figueiredo é perto, mas não assim”.

Dona Ana é vizinha de meu pai. Mora cabeceira do Miriti, zona rural de Parintins. Tem quatorze filhos, alguns casaram e foram morar em outro lugar e outros continuam ali, dividindo uma casa sem divisória, coberta de palha e com assoalho despregado. Sempre que vou à casa do papai, faço questão de conversar com ela. Dona Ana topa qualquer assunto. Nunca deixa o interlocutor falando só.

Há muito ela mora ali, mas faz pouco tempo que descobri sua capacidade de diálogo. Faz uns seis anos. Foi numa vez que uma onça atacou o poleiro de meu pai. Aconteceu à noite. O barulho do ataque acordou todo mundo, mas ninguém teve coragem de sair da casa para ver o que era. Não dava para abusar. Papai construiu a casa dele a 20 metros da floresta virgem.

De manhã, Dona Ana apareceu por lá com um pedaço de pau na mão. Ouviu a conversa e começou: “Ah, seu Aguinaldo (nome de meu pai), por isso é que toda tarde eu entro na mata atrás de filho de onça. Vai eu e esse corumbote (apontou para um dos filhos). Quando a onça sai da galhada, a gente vai lá e tira os filhos e lava pra casa, não é aquele?” E curumim, balançando a cabeça confirmou: “Éhhh”.

Antes que ela concluísse a história, meu pai já fechava a cara. Tanto que ele quis fazer dona Ana interromper o causo e tentou constrangê-la, perguntando: “Como, dona Ana, se eu nunca vi nenhuma onça na sua casa?” Mas ela não perdeu baque: “Não, seu Aguinaldo, acontece que, quando elas vêm pra casa, elas viram gato. No mato é que elas viram onça.”

Em outra viagem, assim que dona Ana ouviu meu barulho por ali, ela apareceu. Foi ter direto comigo: “E aí, Gordão (assim ela me chama)? Chegou hoje?” Sim, respondi. Ela: “Vai quando?”. E meu pai, como um bom parintinense, cheio da pavulagem, disse: “Ele já vai amanhã”. E ela repetiu: “Já!” E o papai: “Ele veio de avião e vai voltar de avião”.

Mas pensam que dona Ana não tinha o que falar? Tinha! E muito! “Eu nunca andei de avião. Só de helicóptero (ela falava ‘hielicop’)”. De helicóptero? – repliquei. E ela: “Foi num dia que passei mal dentro de um barco. Assim que a gente entrou no Paraná do Limão, o comandante do barco achou que eu não chegaria em Parintins. Aí, ligou para o pessoal do Petrobras”.

Eu, curioso para saber o desfecho, pedi que continuasse. E ela, na hora: “Eles mandaram um hielicop. O bicho me pegou na tolda do barco. Lá em cima eu embarquei. Quase nem dava para subir, porque ‘suprava’ muita na gente”. E eu, de novo, interrompi olhando para o papai, e ela continuou: “Eles vieram, me trouxeram para o hospital. E, graças a Deus, fiquei boazinha”.

Imaginei a cena do resgate e perguntei o que aconteceu com o barco. Ela e contou: “Gordão, esse pessoal da Petrobras é muito bom. Quando eu saí do hospital, eles perguntaram: ‘Já, dona Ana?’ E eu disse ‘já’! E eles falaram: ‘então, dona Ana, vamos deixar a senhora de volta. Assim como a gente lhe trouxe, a gente vai lhe levar. E assim aconteceu! Ainda peguei o motor na saída do Paraná do Lima”.

Bem, já marquei a viagem para Presidente Figueiredo. Vou viajar segunda-feira com ela. Serão 90 minutos de conversa.

*Filósofo, mestre em Sociedade e Cultura/Ufam.

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