Mingau de Manga
Publicado em: 08/08/2009 às 00:00 | Atualizado em: 08/08/2009 às 00:00
Mingau de Manga é o apelido do Everaldo. Recebeu a alcunha após uma briga de rua. Mas isso foi quando ainda era criança. Naquela época, era chamado por alguns de “E ele morre” e por outros, de “Né, mamãe?”. Na verdade, esses dois agrados foram variações da antonomásia original “E ele morre, né, mamãe?”.
Não recebia os apelidos por acaso. Cada um tinha uma história. O “E ele morre”, por exemplo, foi por causa de um cachorro que caiu num buraco de rua em frente à casa dele. Era um buraco tão grande que o animal, coitado, debatia-se e não conseguia sair. O esforço do cão virou atração da molecada, que passou a atirar pedra no vira-lata.
Penalizado com a tortura, Everaldo fez apelos em favor do cachorro. Ameaçou atirar água gelada na turma, mas ninguém o atendeu. Mingau de Manga se enfureceu. Correu para dentro de casa, pegou uma panela com água e jogou na garotada. Em resposta, colocaram ele para fazer companhia com o pirento.
Mingau de Manga não se intimidou. Enfrentou a turma. Lembro-me ainda hoje dessa briga. Naquele tempo, Bruce Lee era o artista da moda. Não por acaso. Os filmes dele passavam quase todo dia no Cine Oriental. Pois bem, Everaldo ficou em posição de kung fu, deu uns golpes no ar com as mãos e os pés, mas acabou sendo dominado pelo bando.
Assim que percebeu que sua arte marcial não lhe ajudava, Mingau de Manga começou a chorar. E chorou ainda mais quando sua mãe apareceu no meio da confusão com um pedaço de ripa na mão. Foi aí que ele olhou para ela e para o cachorro e falou chorando, com pena do animal: “E ele morre, né, mamãe?”.
Lembrei-me das histórias dele esta semana, durante um engarrafamento na Zona Leste. Eu estava no ônibus, quando ouvi uma voz vinda de um alto-falante montado em um carro velho cheio de frutas: “Fala, Bodó! Fala, Bodó”. Ao ouvir isso, lembrei que aquele era meu apelido. (Preciso explicar: Bodó: peixe feio, porém gostoso).
Assim que olhei para a sucata ambulante, ele repetiu: “Fala, Bodó! Aqui é o Mingau de Manga”. Fazia mais de 20 anos que não o via, mas ainda guardava na memória os traços de sua fisionomia. Pus a cabeça para fora do busão e troquei algumas palavras com meu amigo de infância. Mas, enquanto eu conversava, meus pensamentos viajaram no tempo para recordar a briga que lhe rendeu o apelido.
À época, Everaldo era famoso por se envolver em confusão. Há muito queria brigar com o “Té Pégo”. Té Pégo era um garoto recém-chegado do interior e que arrastava muito o sotaque rural. Cerca com cerca, foi ser vizinho do “E ele morre”. Everaldo passou meses, talvez um ano, querendo medir força com “Té Pégo”, que sempre se acovardou.
Mas um dia perdeu a paciência e disse: “Tó qué? Vem cá!”. Mingau, que naquela época era apenas o Everaldo, se armou para o combate. Colocou o pé esquerdo na frente e o outro atrás. Esticou a mão esquerda quase no rosto do vizinho e a direita posicionou como uma garra de águia à altura do peito. E começou a gritar como Bruce Lee.
Sem estilo, Té Pégo fechou as mãos, endureceu o punho e esperou o ataque. De repente, os dois se embolaram. Té Pégo atracou Everaldo e o atirou no chão com a habilidade de um vaqueiro. E começou a sessão de socos.
Everaldo ainda tentou reagir, mas não conseguiu. Debaixo do rival, então, passou a gritar. “Bate, pode bater que tu vai te ver comigo. Bate, que tu vai te lascar pro resto da vida. Bate, que eu vou dizer pra todo mundo como é o teu apelido, seu Mingau de Manga! Mingau de Manga! Esse é teu apelido. Pensa que eu não sei. Vou espalhar pra todo mundo, seu Mingau de Manga.”
Os gritos de Everaldo viraram gozação na hora e, por caprichoso do destino, o apelido se voltou contra ele para o resto da vida.
*Filósofo, mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.
Ilustração: Homahs.