Criada em Manaus primeira associação de indígenas venezuelanos

Diversas famílias waraos entraram no Brasil em busca de melhores condições de vida

Dassuem Nogueira, especial para o BNC Amazonas

Publicado em: 10/10/2023 às 18:39 | Atualizado em: 10/10/2023 às 20:19

Em 2024 completará dez anos que os indígenas do povo warao, originários do delta do rio Orinoco, na Venezuela, viraram notícia pela primeira vez no Brasil.

Na ocasião, um grupo de indígenas dessa etnia estava em Boa Vista, em Roraima, pedindo dinheiro nas ruas e vendendo artesanato.

As atividades são incompatíveis com o visto de turismo que havia sido concedido a eles na fronteira, em Pacaraima (RR).

O grupo foi deportado. Desde então, diversas famílias waraos entraram no Brasil em busca de melhores condições de vida.

Além deles, outros quatro povos chegam até a fronteira: eñepa, kariña, pemon e wayuu,

O ano de 2016 é o marco do agravamento da crise econômica e política que culminou no desabastecimento e desassistência na Venezuela.

Com a situação, a saída de nacionais da Venezuela para outros países aumentou significativamente.

O Brasil é o 5º destino mais procurado. Antes, há Estados Unidos, Espanha, Colômbia e Peru.

Os waraos têm ido quase exclusivamente para o Brasil. Mas, também estão presentes na Bolívia e na Argentina, passando pelo Brasil.

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Um território impactado

Em 1960, a construção de uma estrada dique barrou o Mañamo, um dos principais rios que cortam suas terras. O barramento provocou a entrada das águas salgadas do mar do Caribe no rio Orinoco.

Em uma porção significativa do território, a água ficou salobra para beber e, quando o rio descia, as terras ficaram salgadas, impedindo o plantio.

Em 1990, houve a instalação de petroleiras no delta do Orinoco. Além da poluição por rejeitos inadequadamente tratados, as petroleiras levaram doenças, prostituição e o uso abusivo de substâncias ilícitas e álcool.

Nessa década, os waraos da comunidade de Mariusa, no litoral, foi acometida por uma epidemia de cólera que levou à morte 500 indígenas.
A situação esvaziou a comunidade, que fugiu para as cidades próximas com medo da morte e da desassistência.

Os mariuseiros formaram os primeiros acampamentos urbanos dos waraos nas pequenas cidades da região do delta do Orinoco.

Em 2010, a mineração foi legalizada no chamado arco do delta. Na época, a liberação foi vista como solução para a crise que se desenhava.

Cada evento provocou novo reordenamento de sua população no território.

Os waraos precisaram encontrar estratégias para sobreviverem, já que não puderam mais viver do modo tradicional, coletando, caçando e pescando.

Eles passaram a vender artesanato e trabalhar, a maioria, em funções que exigem menor qualificação e baixa remuneração, como trabalhos sazonais nas temporadas de colheita.

Na década de 90, parte das mulheres passou a pedir dinheiro nas ruas e espaços públicos. Como em outras atividades, elas levam as crianças menores.

Com o tempo, começaram a fazer excursões para as cidades maiores, a fim de complementar o pouco dinheiro obtido pelos maridos.

Quando chegaram, assim como faziam na Venezuela, parte dos waraos começou a viajar para arrecadar dinheiro. O montante serve para manterem as suas famílias tanto no Brasil quanto na Venezuela.

Desse modo, eles chegaram a Manaus em dezembro de 2016. Parte deles formou junto com os nacionais venezuelanos um acampamento no entorno da rodoviária. Outros alugaram quartos de hotéis e casas no centro e área portuária da cidade.

Em 2017, parte deles seguiu para Belém, no Pará. Em 2018, outra porção seguiu para Porto Velho, capital de Rondônia.

Dessas capitais, desenvolveram rotas para as regiões Nordeste e Centro-Oeste.

Em 2019, alcançaram todas as regiões do país. Atualmente, estão em cidades de todos os estados, exceto o Amapá.

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), os waraos são cerca de 5 mil pessoas no Brasil. Eles constituem a maior população indígena imigrante do país. Cerca de mil crianças waraos já nasceram no Brasil.

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Em busca de soluções duradouras

Ao longo de nove anos, os waraos se constituíram uma realidade brasileira. Desde que chegaram, os agentes públicos os trataram como uma emergência social e temporária.

Contudo, atualmente, há o consenso entre as instituições que os assistem de que eles precisam ser incluídos em políticas públicas visando resultados a longo prazo.

De sua parte, os waraos residentes em Manaus criaram a Organização Indígena Venezuelana em Manaus, Amazonas, Brasil (OIVAB). A organização está em vias de regulamentação.

Fiorella Ramos, indígena warao, é médica, mas no momento não está exercendo sua profissão no Brasil.

Chegou a Roraima há quatro anos e está há dois em Manaus.

Desde o começo do ano, Fiorella está à frente da articulação que fundou a organização.

Segundo ela, a criação da OIVAB “se dá pelas muitas necessidades que padecemos e que realmente podemos solucionar com propostas que podemos dar”.

Essa é a terceira representação de indígenas de origem venezuelana criada no Brasil. Em Roraima, há três: a Associação dos Migrantes Indígenas de Roraimõ (Amir), criada em 2021.

A Amir é composta, principalmente, por indígenas da etnia pemon taurepang, mas também desenvolve ações destinadas aos waraos e à comunidade.

O coletivo Yakera ine representa as famílias que permaneceram ocupando o espaço do antigo abrigo Pintolândia, em Boa Vista.

Muitas famílias waraos não aceitaram a transferência para os abrigos do complexo Rondon em março de 2021 e permanecem lá requerendo soluções duradouras, para além de abrigos.

Há o Conselho Indígena Najakara Moorü, conformado por indígenas waraos e karinas que se organizaram para comprar uma propriedade na comunidade rural do Cantá, próxima a Boa Vista. As famílias fazem uso coletivo da terra, desenvolvem projetos de agricultura familiar e fortalecimento cultural.

E há ainda o Conselho Warao Ojiduna, que representa os indígenas de Belém.

‘Uma só Amazônia’

Fiorella disse que “somos povos indígenas, membros de uma só Amazônia, sujeitos de direitos internacionais, especialmente no âmbito das Nações Unidas e da Organização Internacional do Trabalho, OIT. A Convenção 169 afirma que os povos indígenas têm o direito que os estados, dentro de seus sistemas legais, reconheçam sua plena personalidade jurídica”.

Agora, por meio da representação legal da OIVAB, os indígenas venezuelanos residentes em Manaus, em maioria waraos, mas também kariñas e eñepas, pretendem dialogar com as instituições.

Segundo levantamento da OIVAB, são 600 indígenas venezuelanos em Manaus, residentes em dez bairros.

Fiorella afirmou que o trabalho da OIVAB será “garantir o cumprimento dos direitos para a população indígena, a educação e saúde, a uma melhoria de vida, a sustentabilidade sócio econômica e que possamos garantir, no futuro, estabilidade a cada família. Cerca de mil crianças indígenas já nasceram no Brasil”.

Em uma de suas primeiras ações, a OIVAB pretende, junto à Secretaria de Educação de Manaus, conseguir criar um centro de cultura e língua, onde professores indígenas waraos ou de outras etnias tenham garantido o direito a educação específica e diferenciada.

Os centros de cultura e língua correspondem à Lei 1.781, de 16 de setembro de 2021, que dispõe sobre a educação escolar indígena em Manaus. A lei atende a demanda dos indígenas residentes na capital.

Fiorella disse ainda que “é importante destacar que nós somos povos originários que podemos contribuir com esse país. Somos pessoas preparadas com experiencia de trabalho em educação, saúde, artesãos, agricultores, pescadores, carpintaria e penso que podemos fazer um bom trabalho para sustentar a nossas famílias e garantir o futuro de nossas crianças”.

Fotos: divulgação