Os cabelos do Zé
Publicado em: 21/03/2009 às 00:00 | Atualizado em: 21/03/2009 às 00:00
Desci do ônibus curioso para saber quantos fios de cabelos têm na cabeça. Não perdi tempo. Fiz a pergunta ao Google e lá me veio a resultado da busca: “Caro amigo repórter, as pessoas têm entre 90 mil e 150 mil fios de cabelo na cabeça”.
O assunto me interessou porque, naquele dia, havia encontrado o Zé. Ele era o operador de áudio da primeira empresa que trabalhei. Não o via há exatamente 20 anos. A maior mudança nele foi a do cabelo. Talvez de tanto olhar sua cabeça tenha esquecido de notar outras alterações que ocorreram nessas duas décadas.
Ele embarcou no ônibus na parada do Colégio Militar, no Centro. Fiquei impressionado com a memória de meu ex-colega de trabalho. Apesar dos 20 anos passados, ele me reconheceu e imediatamente foi logo provocando: “Olha quem está por aqui, o feio! Tá morando aqui em Manaus, feio?”. Reagi à provocação fazendo brincadeira com seus cabelos.
Assim que entrou no 505 e que eu olhei seus cabelos lembrei-me das palavras de meu professor de redação de texto literário. O mestre Tenório condenava com furor quem usava chavões, frases prontas, mas sempre se traía, quando advertia a turma: “Aqui se faz aqui se paga!”. Para enriquecer a máxima, o professor dizia que essa frase é uma variação popular da “Lei do eterno retorno”.
Preciso explicar. Essa lei é encontrada no livro “A Gaia Ciência” (1882), do filósofo Friedrich Nietzsche, que fala: “E se um demônio te dissesse: Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda inúmeras vezes: cada dor e cada prazer e tudo o que há de pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem”.
Pois bem: Quando comecei a trabalhar naquela empresa, em novembro de 1988, o Zé foi o primeiro a me aplicar o apelido de feio. Fez com tanta competência que até hoje não consigo fugir do agrado. Naquela época eu estava com 18 anos e ele era alguns anos mais velho. Gabava-se de ser namorador, mas era famoso, mesmo, por tomar dinheiro emprestado e nunca honrar o compromisso com o credor.
Mas eu não era a única vítima do Zé. O alvo preferencial dele era o Raimundinho, que trabalhava com rádio-escuta e operador de Telex. O Raimundinho começou a trocar a cor dos cabelos muito cedo. Com pouco mais de 30 anos de idade, os fios pretos cediam lugar ao branco.
O Zé, que dava apelido para todo mundo, não perdeu tempo em fazer gozações com a cabeça do Raimundo. Toda vez que entrava na empresa, ia na salinha do Rai e alertava-o pegando na cabeça do colega:
– Tu sabe o que é isso, Raimundo?
Ele mesmo respondia:
– É chifre. Toda vez que o cara pega um chifre aparece um cabelo branco.
Enquanto eu lembrava dessa história, fixava o olhar para o Zé. Hoje, na cabeça dele, difícil é encontrar um fio de cabelo preto. O branco tomou conta dela.
*Filósofo, estudante de jornalismo, mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.
Ilustração: Carlos Augusto Myrria.