O ritual “Jeroky Guarani Kaiowá” será apresentado hoje pelo boi-bumbá Garantido no 57° Festival Folclórico de Parintins.
Será a primeira vez que o festival encena um ritual indígena de um povo originário de fora da Amazônia. Os povos guaranis são originários da região que compreende as fronteiras do Brasil com Bolívia, Paraguai e Argentina.
São três subgrupos no Brasil: os mbyá, ñandeva e kaiowá. Entre eles, existem variações linguísticas, diferenças culturais e territoriais.
Os kaiowás são os mais numerosos e vivem no Mato Grosso do Sul (MS). Com o avanço do agronegócio na região, o povo sofre um dos mais violentos atentados genocidas da atualidade.
A situação é tão grave que o Ministério dos Povos Indígenas montou o Gabinete de Crise Guarani Kaiowá em fevereiro deste ano.
A medida atende recomendações e medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em entrevista para o BNC Amazonas , Eliel Benites Guarani Kaiowá, diretor do departamento de línguas e memórias indígenas do Ministério dos Povos Indígenas falou sobre o ritual e expectativa sobre a sua representação em Parintins.
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O ritual jeroky
O ritual jeroky, que se pronuncia “jerosy”, é a grande festa do batismo do milho branco. É realizado todos os anos de janeiro a abril, na região de Dourados (MS).
A grande festa começa no pôr do sol da sexta feira e acaba ao meio-dia de domingo.
O jeroky acontece em um espaço chamado casa de reza (oga pysy), conduzida por um líder espiritual masculino, Ñanderu, e uma líder espiritual feminina, Ñandesy.
Jeroky significa canto. É um ritual de grandes cantorias e danças em poesia que percorrem todo o corpo do milho branco desde a raiz, caule, espiga, cabelo e flores.
Nesse caminho, os guaranis kaiowás vão se conectando aos vários patamares celestiais onde vivem as divindades.
Por meio do canto e dança em poesia, Ñanderu e Ñandesy percorrem os quatro cantos do mundo até o amanhecer.
Para os guaranis kaiowás, o amanhecer é o centro do céu. Então eles dançam e cantam tomando o suco do milho branco chamado “chicha” para energizar o corpo. A “chicha” é como uma cerveja natural.
A sua realização tem como objetivo fazer com que o território guarani na terra faça parte da morada de suas divindades.
“Esse é o objetivo desse ritual. Ele é muito importante, é realizado desde tempos imemoriais até hoje, mesmo em meio a toda a dificuldade que passa o povo guarani kaiowá”, disse Eliel Benites.
O jeroky nos tempos atuais
O jeroky é uma festa que reúne muitas famílias de diversas regiões. Cada família leva alimentos que produziu durante o ano para consumir de forma coletiva.
“Hoje a situação guarani kaiowá é tão difícil. É comum a queima dessa casa de reza como pressão do agronegócio. O envenenamento da terra e do bioma através do plantio de soja afeta o processo produtivo do milho branco. As sementes não indígenas vão se sobrepondo às sementes originárias. Esse é um impacto muito negativo. Além disso, há o envenenamento dos rios e das nascentes. E isso acaba inviabilizando essa produção tradicional do milho branco”, disse Benites.
Ele aponta ainda que o radicalismo religioso também leva a queima da casa de reza. Ele diz que as lideranças espirituais tradicionais são entendidas como representantes demoníacos.
O ritual jeroky é muito importante, mas está cada vez mais ameaçado: “Hoje a luta pela retomada territorial e regulamentação dos territórios, também gera uma violência muito grande com assassinatos de lideranças indígenas, jovens, mulheres. É muito difícil a situação atual dos guarani kaiowá”, enfatiza Benites.
Portanto, Eliel Benites avalia como importantíssima a apresentação do ritual “Guarani Kaiowá do Jeroky” no Festival Folclórico de Parintins.
“Eu fico bastante emocionado com a homenagem de Parintins em relação ao meu povo guarani kaiowá. É uma consideração muito grande com esse “patrimônio dos povos guarani kaiowá”. Isso é muito importante para que as novas gerações possam dar continuidade e dar valor histórico e cultural para o jeroky, pois o povo guarani kaiowá carrega consigo uma semente dos tempos. Por isso considero muito positiva essa homenagem”.
Um jeroky para a vida continuar
Deise Lucy Montardo, etnomusicóloga, é estudiosa do ritual jeroky entre os guarani kaiowá. Ela é autora do livro “Através do mbaraka, música, dança e xamanismo guarani”, fruto de sua tese de doutoramento em 2002.
Montardo enfatiza que os guaranis kaiowás foram expulsos de suas terras. A região onde vivem, atualmente, está desmatada em função do agronegócio.
Mesmo assim, ela diz que “eles seguem firmes na luta pela preservação e pela possibilidade de viver no seu próprio território. Essa é uma luta que precisa de mais visibilidade. O festival de Parintins vai mostrar de forma artística a luta deles e a esperança que eles têm, muito forte, de que, se eles estiverem cantando, dançando e estiver nascendo criança, a mata vai voltar e que a vida na e da terra tem possibilidade de continuar”.
Foto: Mauro Neto/Secom