Márcio Souza e Delfim Neto: opostos na Ordem do dia

As mortes de ambos é mais um fato que deve aguçar a imaginação dos aficionados por coincidências.

Por Wilson Nogueira, do BNC Amazonas

Publicado em: 14/08/2024 às 06:36 | Atualizado em: 14/08/2024 às 06:36

As mortes do escritor Márcio Souza e do ex-ministro da Fazenda e do Planejamento Delfim Neto, ocorridas na madrugada de ontem (12/8), é mais um fato que deve aguçar a imaginação dos aficionados por coincidências.

É que Delfim Neto era ministro do Planejamento, de 1979 a 1985, enquanto Márcio Souza publicava A ordem do dia (Marco Zero, 1983), obra que ridiculariza staff da ditadura militar (1964-1985), por meio de paródias que colocam a aparição de Objetos Voadores Não-Identificados (OVNIS) no centro das atenções da polícia política do governo de exceção.

Delfim Neto, à essa altura, era o todo-poderoso tecnocrata dos militares e replicava no Brasil as regras ditadas pelo império norte-americano, fiador do golpe.

Essa paródia da vida brasileira utiliza as narrativas comuns aos livros de espionagem e suspense, tornando-se uma viagem risível pelo Brasil sob a ótica dos golpistas.

O romance começa com a explicação do verdadeiro sentido da expressão ordem do dia: “Apesar de a recepção real do termo ser militar, no meu campo de percepção pretendi conduzir o leitor para os dias de hoje”.

Assim, avisa: “[…] em certos trechos podemos identificar fatos acontecidos recentemente no País”:
Mas isso não impediu o autor de declarar, que tudo nem tudo se referia à história de extraterrestres – ou de estranhas figuras que haviam assaltado o poder no País. Entre os relatórios dos contatos de seres extraterrestre com as autoridades brasileira está o encaminhado por um certo coronel Alfredo Nunes e Silva ao Departamento de Operações Centrais do Serviço Nacional de Informação (DOC-SNI), cérebro da polícia política do regime:
[…]
“LOCAL:
Lago Sul, Brasília, DF. FONTE:
Absolutamente verdadeiro.

O ministro do Planejamento [Defim Neto] saía de sua residência, no carro de chapa branca n.° MP-0008, oficial da autarquia e de uso privativo do gabinete do ministro, quando, nas proximidades da Península Sul, a viatura deparou-se com uma espessa bruma, onde penetrou.

O ministro, intrigado, pois aquele tipo de bruma não era muito comum em Brasília, comentou o fato com o chofer. Este respondeu que achava que a bruma era fumaça proveniente de alguma queimada ou incêndio acidental de floresta longe do Plano Piloto e trazida pelo vento. Naquela época do ano a falta de chuvas propiciava aquele tipo de incidente.

Minutos depois, o carro saiu da bruma e o ministro deu-se conta de que não estava mais em Brasília. Estava na altura do n.º 1000 da Madison Avenue, em Nova York, onde o ministro aproveitou para assinar uma nova carta de intenções com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Sua Excelência retornou por avião de carreira, no dia seguinte.

O chofer encontra-se internado no Hospital Betsheba, Pavilhão Psiquiátrico, em estado de catatonia”.
[…]

Em seus livros, Márcio Souza usa e abusa da ironia para chamar a atenção dos leitores às contradições da realidade brasileira.

Assim, ele aguça as inquietações dos leitores desde os títulos das suas obras, como em: Galvez, o imperador do Acre, sobre o movimento liderado por um certo Galvez, espanhol, que almejava ser imperador da parte das terras bolivianas na Amazônia, o Acre, anexadas ao território brasileiro.

Mad Maria (Maria Louca), sobre a inacabada Estrada de Ferrovia Madeira-Mamoré, projeto megalômano do governo brasileiro, em conluio com empresários norte-americanos, para descer a borracha dos altos rios amazônicos até ao Atlântico;

A resistível ascensão do boto tucuxi, uma crítica escrachada ao populismo de Gilberto Mestrinho, líder político amazonense;

A caligrafia de Deus, que tem Manaus como cenário e personagem de uma narrativa que denuncia a escrita do dito progresso (Deus), que subjuga e apaga a cultura das populações originárias da Amazônia.

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Chupa-Chupa em Parintins

O romance A ordem do dia começa com a aparição de Objetos Voadores Não-Identificados (OVNIS) na comunidade da Valéria, em Parintins, no baixo Amazonas.

Assustados, os moradores fogem para a cidade e chamam a atenção da recém- chegada Vera Martins, agrônoma paulista que trabalha para o Ministério da Agricultura.

Em Manaus, ela apresenta ao amigo Paulo, jornalista da revista Isto é, uma gravação em fita cassete com um menino morador da Valéria que diz ter visto um disco voador.

O mais intrigante, para Vera, moça chegada a mamar dirijo, era o fato de as autoridades parintinenses não darem a mínima atenção para o caso; nem Paulo, porque se diz acostumado a cobrir esse tipo de delírio coletivo.

Mas, o que poderia ser absurdo para a razão, tornou-se assunto de estado para os não menos delirantes membros do SNI.

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Coco de porco nas ruas

Quem não aprovou o livro, mesmo com a advertência de que se tratava de obra ficcional, foram os políticos parintinenses que subiram nas tamancas, principalmente, por esta passagem:

“Procurando a sombra, Vera ia pulando sobre as bostas de porco que floriam as ruas de Parintins”.

Houve, inclusive, um movimento para tornar Márcio Souza persona no grata na cidade, mas a oficialização do ato foi barrada antes de chegar à ordem do dia da Câmara Municipal, em razão da advertência de um vereador leitor que convenceu os exaltados de que se tratava de uma obra ficcional.
O mal-estar foi aparado de vez em 2009, quando Márcio Souza foi a Parintins como palestrante do Festival Literário Internacional da Floresta, realizado pela Editora Valer.

Na ocasião, foi prestigiado por uma plateia interessada na apresentação do seu legado literário.
Dedicação

O jornalista Isaac Maciel, da Editora Valer, pela qual Marcio Souza também publicava suas obras, disse que o escritor desenvolvia várias novas obras, entre as quais, três para a coleção Reflexões amazônicas.
Um dos livros, Amazônia regional e universal, está em processo de impressão. Trata-se de um ensaio no qual o autor provoca debates sobre a condição política e cultural da Amazônia nas interpretações da geopolítica mundial.

Esses livros serão lançados no final de setembro, na inauguração da Valer Teatro Livraria, no Largo de São Sebastião, em Manaus.

Márcio deixa um legado imprescindível para a compreensão do pensamento social amazônico”, disse Isaac Maciel, que soube da morte do amigo em Paris, onde passa férias.

Arte: gilmal