Cem anos da agroecologia, mas qual agroecologia? (parte 1)
Ao completar um sรฉculo, a agroecologia reflete sua evoluรงรฃo e os conflitos que desafiam seu papel no futuro da agriculturaย global.

Adrissia Pinheiro, por Gustavo Fonseca de Almeida*
Publicado em: 02/01/2025 ร s 14:44 | Atualizado em: 02/01/2025 ร s 14:44
Tudo tem seu tempo. Se compararmos o tempo de vida das pessoas com a idade das ciรชncias, ousaria dizer que a agroecologia รฉ uma jovem questionadora, ร s vezes confusa, filha da histรณria das agriculturas, da ecologia, das ciรชncias sociais e econรดmicas, e que estรก prestes a ganhar a maioridade.
Nรฃo รฉ por acaso que, mesmo depois de uma crescente apariรงรฃo em debates e discussรตes sobre o futuro da agricultura e da alimentaรงรฃo mundial no contexto da pandemia da covid-19 e da emergรชncia climรกtica, o termo agroecologia estรก longe de ser familiar para a maior parte das pessoas.
Nas universidades, o termo รฉ aceito como uma ciรชncia, mas tambรฉm รฉ utilizado para indicar um conjunto de prรกticas produtivas que se orientam por processos ecolรณgicos e, ainda, como um movimento social. ร nesse sentido que o seu reconhecimento e a sua disseminaรงรฃo enfrentam vรกrios desafios, exatamente pelo fato de a agroecologia significar coisas tรฃo diferentes para diferentes pessoas.
A agroecologia tem origem em pelo menos quatro ramos do conhecimento, responsรกveis por sua concepรงรฃo, crescimento, amadurecimento e representatividade. Suas raรญzes saem do campo da ecologia, em disciplinas da agronomia, da reaรงรฃo social contra as injustiรงas no campo e contra a contaminaรงรฃo dos recursos naturais por agrotรณxicos, alรฉm do interesse pelo conhecimento cultural de povos originรกrios em diferentes partes do mundo.
Minha intenรงรฃo รฉ apresentar, aqui, uma breve biografia da agroecologia โ bastante superficial โ, mas com uma sincera esperanรงa de esclarecer o significado dessa extraordinรกria, ousada e jovem ciรชncia, que estรก prestes a completar um sรฉculo.
Alรฉm disso, pretendo elencar alguns conflitos que desafiam o avanรงo da agroecologia e que talvez nem possam ser superados. Contudo, se o objetivo รฉ uma adesรฃo ampla por parte da sociedade, para que seja possรญvel uma rรกpida adaptaรงรฃo ร s mudanรงas climรกticas, uma reflexรฃo mais profunda serรก necessรกria.
Ecologia, agricultura e agroecologia
Ecologia รฉ a ciรชncia que estuda as interaรงรตes entre os organismos vivos e o ambiente. Significa o estudo da casa, ou o estudo do meio em que as plantas e os bichos vivem, se reproduzem, interagem com outros organismos, morrem e sรฃo decompostos. Jรก faz tempo que a sociedade aceitou a teoria da evoluรงรฃo das espรฉcies, que se faz pela seleรงรฃo natural, e ocorre por adaptaรงรฃo dos organismos ao meio em que sobrevivem e se reproduzem.
Assim, uma primeira definiรงรฃo da agroecologia รฉ โo estudo das interaรงรตes entre organismos e o seu ambienteโ, mais especificamente nas รกreas rurais, e, mais ainda, nos agroecossistemas. A ecologia, como campo cientรญfico, busca desvendar as grandes leis da natureza, com foco, principalmente, na natureza intocada, que nรฃo รฉ modificada por seres humanos.
Jรก a agricultura รฉ um campo de conhecimento bastante antigo, anterior mesmo ร s ciรชncias modernas que floresceram com o Iluminismo. Diferentemente da ecologia, que pode ser compreendida como uma โciรชncia puraโ, voltada para o estudo da โnatureza selvagemโ, o aporte cientรญfico da agricultura busca compreender o manejo e o cuidado necessรกrios com plantas e com animais domรฉsticos, a fim de nos fornecer alimentos, roupas e uma enormidade de outros produtos.
A primeira apariรงรฃo do termo agroecologia em uma publicaรงรฃo cientรญfica ocorreu em 1928, quando um pesquisador russo descreveu o uso de mรฉtodos ecolรณgicos em uma pesquisa que tinha por objetivo comparar as caracterรญsticas fenotรญpicas de diferentes variedades de milho.
Naquele momento, o pesquisador descobriu haver complementaridade entre a ecologia e a agronomia. Essa iniciativa permite sugerir uma segunda definiรงรฃo do termo agroecologia, um pouco mais sofisticada. Neste caso, trata-se de โa aplicaรงรฃo da ecologia para melhorar as prรกticas agronรดmicasโ.
Influรชncia francesa
No contexto das prรกticas produtivas, a intenรงรฃo foi sugerir o uso da ecologia para melhorar a eficiรชncia no uso dos insumos, controlar com melhor eficiรชncia as pragas e as doenรงas nas lavouras e rebanhos, e atingir a estabilidade nos sistemas de produรงรฃo.
Em outras palavras, o foco prรกtico das ciรชncias agronรดmicas dizia respeito a quais, onde e quando prรกticas agropecuรกrias realmente funcionavam para os agricultores, levando ร ideia de que a agroecologia deveria ser tratada como um conjunto de prรกticas que, de maneira geral, promoveria melhorias na qualidade de vida dos agricultores, dos animais de produรงรฃo e na conservaรงรฃo do ambiente.
ร preciso pontuar que essa relaรงรฃo com o aporte das prรกticas agropecuรกrias teve grande influรชncia francesa, que, em sua histรณria, enfatizou a importรขncia da ecologia no cultivo de plantas e manejo de animais. Contudo, tambรฉm promoveu que a ecologia de paisagens, trazida pela abordagem dos territรณrios, seria composta por um mosaico de agroecossistemas que se conectam com รกreas preservadas e nos quais uma sรฉrie de relaรงรตes produtivas e sociais ocorre.
As interaรงรตes entre diferentes unidades de produรงรฃo, distribuรญdas na paisagem, permitiriam avanรงar de uma abordagem meramente local dos sistemas de produรงรฃo nos agroecossistemas para compreender a influรชncia desses modos de produรงรฃo, que se inter-relacionam nas paisagens.
A sustentabilidade e o estรญmulo ao metabolismo territorial que ocorrem nesses territรณrios โ e, no caso do Brasil, estรฃo incorporados ao aporte das bacias hidrogrรกficas โ, por serem reconhecidas em sua dimensรฃo polรญtica como a unidade de aplicaรงรฃo da Polรญtica Nacional de Recursos Hรญdricos e, com isso, como uma unidade de gestรฃo de recursos hรญdricos nas paisagens, depende das relaรงรตes humanas e da importรขncia do aporte das ciรชncias sociais para melhor compreensรฃo dessas relaรงรตes.
Com esse ponto, รฉ possรญvel apresentar uma terceira definiรงรฃo para o termo agroecologia: โo estudo dos impactos da agricultura sobre os sistemas ecolรณgicos naturaisโ. Essa definiรงรฃo รฉ pouco encontrada na literatura, mas tem sido cada vez mais utilizada para tratar os impactos das mudanรงas climรกticas sobre a conservaรงรฃo da biodiversidade.
Portanto, a jovem questionadora, que participa de uma sรฉrie de lutas pelos direitos humanos e pelas comunidades rurais, especialmente aquelas em maior vulnerabilidade social, permite que a agroecologia seja pautada nos movimentos sociais, que conteste os efeitos da modernizaรงรฃo conservadora, poluidora e acumuladora de injustiรงas as mais diversas.
Versailles, 1972
Os franceses hospedaram, em Versailles, em 1972, um dos mais importantes encontros, reunindo cientistas, ambientalistas e produtores rurais de todo o mundo. Esse encontro histรณrico opรดs-se ร Revoluรงรฃo Verde, que promovia a agricultura industrial por meio de pacotes tecnolรณgicos, impulsionada pela globalizaรงรฃo, crรฉdito subsidiado aos grandes produtores e propaganda massiva.
A ideia era de que a intensificaรงรฃo da produรงรฃo em monoculturas seria a soluรงรฃo mais econรดmica para a fome mundial. Como resultado do encontro, nasceu a Federaรงรฃo Internacional dos Movimentos da Agricultura Orgรขnica (IFOAM), unindo cientistas, agrรดnomos(as), biรณlogos(as), agricultores(as) e ambientalistas.
A IFOAM estabeleceu quatro princรญpios fundamentais para as prรกticas agropecuรกrias em bases ecolรณgicas (agricultura de processos em oposiรงรฃo ร agricultura de produtos) em todo o mundo: a Saรบde, a Ecologia, a Justiรงa e a Precauรงรฃo. Em resposta ร pressรฃo de movimentos sociais, paรญses-membros das Naรงรตes Unidas criaram leis e regulamentaรงรตes para promover a agricultura alternativa e a certificaรงรฃo orgรขnica.
Pioneiros
Pioneiros da Agricultura Orgรขnica no Reino Unido; da agricultura biolรณgica na Itรกlia, Franรงa, Portugal e Espanha; da Agricultura Biodinรขmica na Suรญรงa e na Alemanha; da agricultura natural no Japรฃo e na Coreia do Sul; da permacultura na Austrรกlia e na Nova Zelรขndia; da agricultura Regenerativa nos EUA; da agricultura conservacionista na รfrica e nos Estados Unidos, passaram todos a ser detalhados como prรกticas alternativas ao modelo industrial de produรงรฃo de alimentos, defendidas como uma clara responsabilidade pela manutenรงรฃo dos serviรงos ecossistรชmicos, pela conservaรงรฃo da biodiversidade e pela qualidade de vida aos(ร s) agricultores(as) familiares e camponeses(as).
No contexto da prรกtica, todas essas diferentes modalidades de agriculturas alternativas sรฃo estudadas pela ciรชncia agroecolรณgica, buscando melhoria das tรฉcnicas e dos processos. Para defender esse ponto de vista, o movimento ambientalista chegou ao Brasil por volta da dรฉcada de 1980, e a agroecologia passou a ser abordada por agrรดnomos(as), cientistas sociais, alรฉm dos(as) prรณprios(as) agricultores(as).
A defesa รฉ feita por movimentos da igreja catรณlica, por ONGs e por ambientalistas, em um claro movimento contra a intoxicaรงรฃo das pessoas e dos recursos naturais por agrotรณxicos, alรฉm de apoiar a agricultura camponesa, que foi excluรญda do processo de modernizaรงรฃo (dolorosa) da agricultura brasileira.
Com essas experiรชncias de luta, uma quarta definiรงรฃo do termo agroecologia pode ser apresentada: โmovimentos sociais dedicados a uma agricultura sustentรกvel e protetora do meio ambiente, que garante renda e dignidade para pequenos(as) agricultores(as), que valoriza a cultura tradicional e os modos de vida regional e camponรชsโ.
*O autor รฉ PhD em agroecologia pela Universidade de Aarhus, Dinamarca.
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Foto: divulgaรงรฃo