A apertadinha

Publicado em: 23/12/2008 às 00:00 | Atualizado em: 23/12/2008 às 00:00

Neuton Corrêa*

O Sol e ela sempre chegavam juntos. Ele pela janela; ela pela porta. O Sol não deixou de brilhar, foi ela quem perdeu o brilho. Hoje, a luz chega; ela, não. Não como antes! As manhãs tornaram-se mais cinzentas. Entre os passageiros-expectadores já não há admiração. Há tristeza, frustração!

Agora ela embarca como uma passageira comum. Se tiver lugar vazio, senta; senão, segue a viagem em pé; às vezes, pede para alguém segurar seus cadernos; às vezes, recebe oferta de ajuda, não mais com a mesma intensidade de antes. Antes, todos queriam lhe ajudar. E quem não queria estar ao seu lado?

Seu olhar assanhado cedeu ao olhar perdido, daqueles que se olha e nada se vê. É o olhar da flor que acabou de passar e deixar seu perfume. A piscadela já lhe faz falta para molhar a pupila, que agora mira a rua para acertar a imaginação. O que se passa em sua cabeça é impossível saber. Apenas seus gestos traduzem a mudança.

Há um ano, quase todos os dias, tomamos o ônibus juntos. Eu com um bloco de anotações e um gravador no bolso. Ela, de cadernos com fotos de artistas na capa e livros carimbados: “Biblioteca Central da Ufam”.

Assídua! Pontual! Ajudou-me da forma que nem faz idéia: só por sua causa passei a chegar antes dos professores. Valia a pena! Era um colírio, a melhor forma de começar o dia. Não só para mim, mas também para o Paulo Henrique, com quem discutia os detalhes da fantasia que ela levava para o 125 (Campus/T1/Centro).

Para não pagar duas passagens, tomávamos o ônibus no Terminal da Avenida Constantino Nery. Eu e o Paulo posicionávamos no banco de trás para vê-la embarcar. Era de onde se tinha a melhor visão do espetáculo, a começar pelo esforço em tentar colocar os pés na escada. Ali, já era possível ver os contornos de suas pernas e a exuberância de seus peitos.

Era impossível não chamar a atenção da viagem só para si. Sempre apertava o corpo contra a justeza da saia jeans. Tão acochada que era obrigada a andar de passos curtos. A blusa também fazia sua barriga se contrair e ressaltar as mamas.

Quando não conseguia lugar e era obrigada a ficar pendurada, passava a viagem toda se contorcendo e baixando a microssaia. Lembro-me da ocasião em que descobri que eu e o Paulo não éramos os únicos a ver aquilo como um show. Certa vez, quando a saia subiu demais, fui advertido por meu colega de viagem: eram cabeças inclinadas em direção ao corredor do ônibus, olhando em sua direção.

Foi em um desses dias que as manhãs perderam o brilho.

Ela embarcou no local de sempre. Chamava a atenção de todos, como sempre. O incomum foi a tragédia: o motorista, apressado, acelerou o carro no Boulevard; a platéia a olhava, ela sorria. Não quis que ninguém segurasse seus livros. Apoiou-se com a mão esquerda e com a direita prendia os papéis no peito.

A viagem segue; o motorista freia, todos se desequilibram, o público se exalta; o motora força o arranque, ela perde o apoio; alguém assobia. Ela ri.

Foi o último sorriso!

O motorista acelera ainda mais. Na mesma marcha, faz uma curva fechada. Ela desprende-se do apoio. Sua saia não suporta a pressão da barriga: o zíper e o jeans se rompem; a roupa se abre; ela usa os cadernos para esconder a minúscula calcinha. O peito, porém, aparece. Ela já não sabe o que fazer, desespera-se e pede para descer.

Em frente ao cemitério, onde ela desembarcou, muitos riram, alguns lamentaram. Ali, ela enterrou as roupas apertadas. Agora desfila saias longas, blusas grandes, rosto sem maquiagem e calçados sem saltos.

Que pena!

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