O controle do imaginário segundo Luís da Costa Lima

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 25/05/2009 às 00:00 | Atualizado em: 25/05/2009 às 00:00

Wilson Nogueira

O imaginário sempre esteve sob controle. Essa afirmativa conduziu o Professor Doutor Luís da Costa Lima, do Departamento de Literatura da PUC-RJ, a uma complexa e demorada pesquisa sobre a relação do ato criativo humano, principalmente nas artes e na literatura, com o poder, segmentos de poder e com o mercado. Dos estudos e reflexões sobre o tema resultou a elaboração da teoria do controle do imaginário, assunto que, segundo o próprio pesquisador, exige cada vez mais energia intelectual aprimorada. Luís Costa Lima participou, em Manaus (AM), nos dias 12, 13 e 14 de maio, do “Colóquio nacional poética do imaginário: literatura, história e memória”, promovido pela Cátedra Amazonense de Estudos Literários e pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Em entrevista ao TEXTOBR, ele também falou sobre outros assuntos, como crítica literária e profissionalização do escritor no Brasil. Confira:

Professor, qual o eixo orientador da teoria do imaginário?
A idéia é simples, mas, ao mesmo tempo, exigiria uma equipe de pesquisadores para explicá-la, porque eu, sozinho, nunca darei conta da extensão do problema. O que se entende por controle do imaginário? Muito sumariamente, sabemos que não existe sociedade sem que haja um conjunto de regras, e próprio de uma regra é proibir alguma coisa ou admitir outras. Nesse sentido, toda sociedade já tem consigo naturalmente um controle. Não é sobre esse controle natural, derivado do ordenamento de regras, que me refiro quando falo em controle do imaginário.

Controle do imaginário supõe, sim, que tal sociedade não é um corpo homogêneo, como um núcleo, mas que apresenta certos setores ou classes com valores diferenciados. Então, o setor com classe dominante tem conjuntos de valores que procura defendê-los antes mesmo de eles serem atacados. Por controle, entende-se, portanto, essa espécie de Espada de Dâmocles que pesa sobre a cabeça do produtor, do artista. Por que do artista? Porque a obra de arte é, por excelência, obra do imaginário. E é a espada de Damocles que, a qualquer instante, pode desabar.
Isso supõe potencialmente que tal obra contém práticas ou contestação de valores que são os valores da classe dominante, classe ou setor dominante. Fundamentalmente é isso que é controlo do imaginário.

O mercado então seria um mecanismo de controle?
Eu tenho estudado o controle basicamente do Século 16 para cá. Nos séculos anteriores aos momentos da globalização, a partir da década 1980, o controle tinha um caráter dominantemente ético-religioso ou um caráter científico. Desde que ciência se tornou discurso principal, ela se tornou, também, um instrumento de controle da obra de arte. Com a globalização, em vez de o controle se basear em valores éticos ou científicos, observa-se o que eu chamaria de uma neutralização estética – o controle a partir de uma neutralização estética. Isso quer dizer: uma determinada obra ou ação pode ser contrária a valores dominantes, entretanto, os manipuladores do mercado verificam que, mesmo agressiva, porque é contrária, isso vende. Então essa obra não é só vendida, mas estimulada exatamente porque ela é contrária aos valores dominantes. Como isso é possível? Ora, através de uma neutralização do estético. Não se considera a obra pelo seu valor estético, mas pelo seu valor de mercado.

Qual seria o melhor exemplo para essa situação?
Parece-me que o exemplo é menos freqüente em literatura do que na pintura. Situação típica seria a do gerente de um banco que tem atrás de si uma obra de pintura abstrata. Ele não entende absolutamente aquilo, está se lixando para aquilo, entretanto, sabe que aquilo tem um grande valor de mercado.

“O que vem dá em regionalismo, realismo e toda essa série cujo termo correto seria imbecilidade”

Na opinião do senhor, qual é o gênero literário dominante no Brasil hoje?
Eu verificaria duas tendências. Uma que eu acredito dominante – ela mantém uma tendência nossa que é o documentário, o realismo. A idéia da obra como espelho – com ou sem aspas – da realidade. Essa tendência atravessa o Século 19 e vem para o Século 20, o que vem dá em regionalismo, realismo e toda essa série cujo termo correto seria imbecilidade. Isso impõe um controle do ficcional. Esse controle do ficcional, parece-me, continua dominante entre nós. Mas, ao mesmo tempo, eu vejo surgir um movimento contrário. Vejo com muita esperança uma tendência contrária. A tendência que começar a romper com a obrigatoriedade de a obra ter consigo índices de brasilidade evidentes – esse exemplo estaria na obra de Bernardo Carvalho –, e a tendência da substituição da idéia de regional e regionalista pela idéia de reflexão. Ou seja: reflexão da memória, da herança, sobretudo, de migrantes – isso corresponderia, fundamentalmente, à obra de Milton Hauton. Essas seriam as duas tendências.

Observei, no colóquio, que o senhor se insurgiu contra o reconhecimento da carta como obra literária. É isso mesmo?
A consideração a ser feita é que não se leva em contra, normalmente, a grande mudança que a idéia de literatura tem a partir de 1960 a 1970, o auge da reflexão teórica contemporânea, que modifica completamente a idéia de literatura que se desenvolve a partir das histórias literárias do Século 19. Essa idéia suponha a literatura como um conceito de metahistória, vindo lá de Homero, atravessando os gregos, passando pelos romanos, quando se sabe que, historicamente, a idéia de literatura como um discurso autônomo, diversificado, próprio, vem apenas do final do Século 18. Vem do chamado primeiro romantismo alemão. Isso degenera rapidamente a literatura como expressão de um eu, da individualidade, eu quem falo, enquanto o cientista observa – essas besteiras.

Leva-se em conta, portanto, que toda essa revisão do conceito de literatura põe em cena uma coisa que a gente não deveria esquecer, que é a literatura como nós a entendemos, ou seja, que é a literatura com discurso ficcional, próprio, distinto do texto historiográfico ou do discurso das ciências sociais. Essa acepção, repito, é recente, do final do Século 18. É nesse sentido que vem a minha oposição à carta como elemento literário.

Quando Cícero se retira para a sua propriedade, para escrever as suas cartas, ele não está pensado carta como nos entendemos. Quer dizer, como nos entendemos: eu lhe escrevo uma carta (… se para tanto eu me retiro não sei para onde para que essa carta seja mais elegante etc). Você ao recebê-la, pode ser que ela seja muito bonita, pode ser que ela seja à la Rui Barbosa, mas carta não é.

Carta, para nós, supõe um documento auxiliar da história. A carta antiga não é isso, não é um acessório da história, e tão pouco a obra antiga é uma obra ficcional. Em princípio, tomar a carta como um gênero literário, supõe entender, como o expositor fazia, literatura como expressão refinada ou exploração de situações universais… Confesso, sinceramente que isso é o antiquarismo a toda a prova.

Como o senhor observa o Brasil como lugar de cenas e cenários para a literatura. Aliás, nesse aspecto, o Brasil é um lugar explorado?
Acho que pensar a literatura brasileira é chamar a atenção para um fenômeno que me parece mais inexplicável até hoje. O fenômeno Machado de Assis. Machado é cercado por todos os lados por realismos, controles, explorações da natureza, nacionalidade, todos os princípios estranhos à idéia de literatura, mas Machado consegue driblar tudo isso com uma simplicidade genial. Não consigo entender como é que aquele mulato consegue essa genialidade toda. Obviamente, que não pelo fato de ele ser mulato, mas pelo fato de ser brasileiro cercado por aquele ambiente.

Nesse sentido, na medida em que Machado é uma grande exceção, e na medida em que as tendências antimachadianas… Tomo o ensaio de Machado sobre instinto e nacionalidade, quando ele vai dizer: olha, a nacionalidade é um instinto, no sentido de que o fato de eu nascer aqui ou ali me faz criar, automaticamente, uma série de valores, atitudes e reações que são como que instintivas. Então, explorar [isso na literatura] como tal é uma imbecilidade. O fato de ser machado uma exceção entre nós significa dizer que somos hoje uma exploração muito pobre, muito controladora da dita realidade nacional. Falar em realidade nacional em termos de literatura já é controlar a expressão literária.

Quais são as possibilidades de profissionalização do autor no Brasil?Praticamente nulas. Há dentro do mundo capitalista – e no mundo inteiro hoje só existe o sistema capitalista – uma larga voracidade de lucro. Isso é redundância. Falar em capitalismo é falar, obviamente, em voracidade. Mas o mercado editorial apresenta, como algumas poucas exceções, uma voracidade muito específica.

Como é que se traduz essa voracidade editorial entre nós? No favorecimento indiscriminado daquilo tudo que é livro de autoajuda ou é livro de diluição, ou é livro com possibilidade de ser best seller. O grande inimigo de uma fecundação literária brasileira está nos editores, em primeiro lugar; em segundo lugar, no fato da conivência entre a academia e esses preceitos reais. Você tem na última década uma possibilidade de simpósios e encontros de literatura como nunca houve nesse País, mas em que simpósio, em que encontro essas questões são levantadas? Não são levantadas. É isso é que eu chamo da perduração do que o Sérgio [Sérgio Buarque de Holanda] designava como cordialidade. A dita cordialidade. Ou seja: confundir crítica intelectual com crítica pessoal. A dita cordialidade é responsável pelo fato de que essas grandes questões sejam sabidas mas não sejam discutidas.

“A academia brasileira é extremamente irregular. Você encontra em meia dúzia de universidades algumas figuras de qualidade efetiva cercados por grandes continentes de mediocridade”.

Qual a sua opinião sobre a crítica literária brasileira como orientadora do leitor? Como orientadora eu não diria. Diria como mediadora no sentido de facilitar o leitor a reconhecer bem ou mal diferentes direções e novidades. Nesse sentido, a crítica como mediadora praticamente desapareceu com o desaparecimento dos suplementos, e o fato de que o que se chama de jornalismo cultural inexistir entre nós. Isso é um grande vazio. A ausência da crítica mediadora representa um grande vazio.

No interior da academia, no interior da universidade, vejo alguma coisa que não é muito simpática nesse sentido, mas que precisa ser dita – eu não faço questão nenhuma de ser simpático. A academia brasileira é extremamente irregular. Você encontra em meia dúzia de universidades algumas figuras de qualidade efetiva cercados por grandes continentes de mediocridade. Claro, isso não é exclusividade brasileira, a qualidade não é bem uma propriedade humana. Mas entre nós essa divergência se acentua. Você tem uma margem de mediocridade muito grande, uma maioria de medíocres em relação a umas poucas figuras excepcionais. Parece-me que isso, também, não é exclusividade do campo da literatura, mas estamos falando de literatura…

Qual é a lição que o senhor toma desse encontro de Manaus?
O meu maior medo a respeito de Manaus era o calor. Esse medo não se cumpriu. Acredito mesmo que foi uma excepcionalidade, uma sorte. Mas a coisa que mais me impressionou no Amazonas foi… Uma coisa é saber que somos um país continental. Outra coisa é verificar essa continentalidade. Foi a vinda a Manaus que me fez perceber essa coisa extraordinária que eu não sei como explicar. Como é que nós conseguimos essa unidade nacional, onde se tem diferenças de sotaques, mas são apenas de sotaques. Você fala português de ponta a ponta do Brasil. Em Manaus, eu tive a sensação de que falo mais português do que no Rio Grande…

Qual a sua avaliação sobre o acordo ortográfico da língua portuguesa? A ausência de um trema para mim é um sofrimento, como suponho que tenha sido um sofrimento no começo do século do século passado, como o desaparecimento do y e do w.

Obras de Luís Costa Lima
Dispersa Demanda (1981)
O Livro do Seminário (1983)
O Controle do Imaginário (1984)
Sociedade e o Discurso Ficcional (1986)
O Fingidor e o Censor: no Ancien Régime, no Iluminismo e Hoje (1988)
A Aguarrás do Tempo: Estudos sobre a Narrativa (1989)
Pensamentos nos Trópicos (1991)
Limites da Voz: Montaigne, Schlegel (1993)
Limites da Voz: Kafka (1993)
Vida e Mimesis (1995)
Terra Ignota (1997)
Mimesis: Desafio ao Pensamento (2000)
Euclides da Cunha: Contrastes e Confrontos do Brasil (2000).

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