Os cacoetes da madame

Publicado em: 31/01/2010 às 00:00 | Atualizado em: 31/01/2010 às 00:00

Neuton Corrêa*
Assim que o ônibus freou ao lado do carro (era um carro de luxo), a mulher dobrou a cabeça na direção do 505. Como uma flecha, o olhar dela atravessou o vazio de alguns centímetros que separavam os dois veículos e atingiu minha atenção. Eram olhos mais azuis do que o azul dos olhos da deputada Vanessa impressos em cartazes em tempo de campanha política.

O vidro baixo da porta da motorista permitiu observá-la até onde o limite de minha curiosidade pôde alcançar. De cima, foi impossível não notar a saliência que empurrava a camisa branca desabotoada até a altura do peito. Nem deixar de imaginar a barriguinha sarada que repousava sob o fino tecido que escorria até as pernas, escondidas por uma calça marrom.

Mas não foi apenas a beleza do corpo da jovem senhora que me prendeu atenção. A lentidão do trânsito da rua Paraíba fez a mulher ficar à vontade em seu carro. Primeiro, balançou a cabeça e começou a fazer movimentos com a boca como se estivesse acompanhando uma canção. Depois, passou a brincar suavemente com os longos e soltos cabelos loiros.

Aquilo tudo me fez perceber que todo mundo tem um cacoete, porém, vício é coisa que só se pode perceber no outro. Mas tem cacoete que aparece mais. Conheço doze irmãos e cada um possui um cacoete diferente, sendo que o último conseguiu um feito incrível. Por conta disso, passou a ser chamado de “Síntese”. O apelido não é por acaso. O cacoete dele é repetir os trejeitos dos onze irmãos.

O mais velho dos Froes (já falecido) mexia a cabeça como um boi bumbá em evolução. Aliás, pouco antes de morrer, acrescentou outra marmota ao movimento que fazia desde a adolescência. Ele estalava a cabeça com um movimento brusco para o lado e a sacudia para trás com cinco ou seis movimentos repetidos rapidamente. Depois disso, vinha a última agonia: uma esfregadela no nariz.

O segundo irmão treme a perna direita. É como se entrasse em transe. Para tudo o que está fazendo, mesmo se estiver conversando, estica a perna direita e dá chutes ao ar como se estivesse fazendo embaixadinhas. O terceiro dos Froes treme os dentes como se estivesse com frio, batendo o queixo. Aliás, ele era o único que não tinha vícios corporais. Contraiu o cacoete depois que passou a usar dentadura, isso depois dos 50 anos de idade.

Síntese, por sua vez, é tudo isso e mais alguns cacoetes próprios. Ele começa o ritual tremendo os dentes, depois balança a cabeça, em seguida as pernas, faz outros movimentos e acrescenta os seus trejeitos, que finalizam com a mão direita no sovaco e depois a retira lentamente para levá-la ao nariz.

A madame também fazia e desfazia em sua cabeça: ela iniciava os movimentos puxando, em feixes, os fios dourados dos cabelos, jogava-os sobre o ombro esquerdo para em seguida espaná-los com a mão direita. E repetiu o ritual enquanto o engarrafamento nos prendia ali.

Ri da mulher dos olhos azuis, do modo como ela encerrava o cacoete. Lembrava, e muito, o Síntese. Assim que terminava de espanar os cabelos, levava as unhas para a cabeça, aplicava umas coçadinhas no couro e, desconfiada, olhava de um lado para o outro, e, finalmente, conduzia as pontas dos dedos ao nariz.

Eu, sem poder comentar com ninguém e viciado em observar os outros, pensei: deve ser uma cabeça muito cheirosa.

*Escritor, filósofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.

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