A foto do mendigo
Aguinaldo Rodrigues
Publicado em: 06/03/2010 às 00:00 | Atualizado em: 06/03/2010 às 00:00
Não aguento mais o peso da imagem do mendigo. Fiz as fotografias na estação de ônibus da Matriz, na manhã do último dia 19 de fevereiro, uma sexta-feira. O que seria apenas um registro para satisfação da curiosidade, tornou-se em minhas mãos, e em minha cabeça, um peso que nenhuma força mecânica será capaz de sustentar.
Era uma boa oportunidade para mostrar como a humanidade trata os seus. Barbado, como típico padre estrangeiro, ele ainda dormia profundamente na calçada. Com os dedos entrelaçados contra o peito e as pernas cruzadas, nele repousava a mais absoluta indiferença ao vai-e-vem de gente e carros acelerados que cruzam o Centro de Manaus.
À primeira vista, quando ainda estava no 300, animado pela moda do Twitter, minha intenção era compartilhar as fotos pela Internet. De longe, a cena parecia engraçada. O homem, três dias depois do reinado de Momo, ainda se curvava à sua realeza, usando blusão rosa e calça verde, com rendas nas bainhas da calça, na gola e nas mangas da blusa.
Porém, ao selecionar o retrato que transmitiria, pus-me a refletir sobre aquele personagem, cujo nome sequer eu sabia. Pensei: o que me autoriza a expô-lo a um mundo ao qual certamente ele jamais terá acesso? O que me autoriza a invadir sua privacidade? O que me autoriza a entrar em sua casa? Nem procurei saber seu nome. Nem sei se ele seria capaz de responder a essas simples questões.
As respostas poderiam estar na evidência: um existente sem existência aos olhos das centenas de pessoas que por ali embarcam e desembarcam dos ônibus. A fantasia verde e rosa, no entanto, talvez fosse um grito para chamar atenção e dizer: “Eu existo”. E, se ele existe; logo, pensa. Esse é o ensinamento da filosofia moderna cartesiana.
Então, se o seu silêncio fala, dar-lhe-ei a voz do Mestre. Farei isso para tentar aliviar a carga que os três cliques da Matriz me trouxeram. Mestre (nunca soube seu nome verdadeiro, mas era conhecido assim por causa das frases que gostava de pronunciar) penitenciou-se a viver na rua, privado dos filhos e de qualquer companhia feminina, desde o dia que sua mulher partiu desta vida, jurando-lhe amor na eternidade.
Mestre sentia-se culpado pela perda. Ela estava animada com a gravidez do nono filho. Ele, pensando nas condições da família, sugeriu-lhe garrafadas abortivas. O feto resistiu ao ataque, mas a criança não pôde ver a luz deste mundo. Nem a menina nem a mãe. Culpando-se pela tragédia, por causa das garrafadas, Mestre, no pé da cova do corpo da esposa, julgou-se daquele dia em diante indigno para merecer a sombra de uma casa, o carinho dos filhos e o amor de uma mulher.
Pensando no drama do Mestre, revejo mais uma vez as fotos do mendigo do Centro. Procuro nelas uma palavra. Não encontro apenas uma, mas várias. Na verdade, um discurso. Um grito! Um apelo! O que no começo era engraçado revela-se trágico agora.
A foto fala por si. Ela retrata um ser que vai à festa, quando a festa termina; um ser que se fantasia enquanto as máscaras caem; um ser que descansa enquanto todos se cansam. Enfim, um ser que põe a saca de lixo debaixo da cabeça para dormir não quer deixar ninguém dormir.
Por isso, agora, para aliviar-me desta carga, apagarei a foto da máquina para que a imagem não se repita mais em minha frente.
*Escritor, filósofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.
Ilustração: Myrria.