A noiva da Cidade Nova
Publicado em: 02/03/2010 às 00:00 | Atualizado em: 02/03/2010 às 00:00
Descobri que não sou o único a espiar a calcinha da passageira. Ela usa peças douradas e prateadas. Por isso, mas não apenas por isso, precipitadamente, chego à conclusão: terei que cantá-la para que seja também a minha noiva, a noiva da Cidade Nova.
Esperei a verdade do tempo para contar o resultado de minhas observações. Não, senhores e senhoras, amigos e amigas do busão, não ando brechando ninguém. E para que não haja dúvida acerca dos relatos que farei agora devo deixá-los cientes: juro, tudo aconteceu por acaso, embora o acaso tenha se repetido.
A primeira vez que a vi com a calcinha brilhosa foi no Carnaval do ano passado. Nos primeiros instantes, achei que minha racionalidade tivesse perdido mais uma luta contra a libidinagem de minha cabeça. Não poderia ser outra coisa a não ser o instinto traindo os olhos. Tentei não olhar. Impossível! O reflexo batia em meu rosto. A luz que saltava em minhas pupilas era tanta que ofuscou o objeto mirado.
No entanto, não era ilusão de ótica nem fantasia de Carnaval. Semanas depois, encontrei-a novamente com a infracobertura reluzente. Foi na Semana Santa! Diferente da primeira ocasião, quando cobria as intimidades com uma roupinha dourada, dessa vez ela usava algo prateado. Mesmo assim, por muito tempo, ainda continuei achando que a primeira espiada havia contaminado minha percepção sobre ela.
Sei que deves estar imaginando como posso saber de tão preciosos e precisos detalhes. Então, começo a me explicar pela geografia física onde esses acidentes acontecem, frequentemente. É em uma parada de ônibus da rua Timbiras, entre os núcleos 2 e 3 da Cidade Nova 2. Para quem vem pelo Parque das Laranjeiras, é o segundo ponto do busão da Timbiras, mais precisamente na primeira parada depois do semáforo do Cruzeiro.
Pois bem, essa parada foi construída a 65 metros de casa. Na verdade, não é somente um ponto de embarque e desembarque de passageiros. É um abrigo coberto com telhas de barro e mobiliado com dois bancos de cimento. Fica de frente para a rua 12, da quadra 99. E é justamente esta localização, de cara para a rua, que permite a qualquer desavisado, despido de qualquer maledicência, perceber a distração dela.
Talvez nem seja distração. Acho até que o banco dificulta sua acomodação, pois suas longas pernas ultrapassam o assento abrindo a fresta entre suas coxas e a microssaia. Percebo que ela se esforça para não se expor, porque aperta coxa com coxa como pode. Acontece que a reluzência da roupinha se projeta e fica ainda mais atrativa quando o Sol para ali e faz das suas saliências.
Esta semana, para acabar com as minhas dúvidas, a mulher da calcinha brilhosa exagerou. Estava à vontade demais. Distraia-se a pentear os negros e longos cabelos e a retocar a maquiagem, mirando-se com um pequeno espelho preto na mão esquerda. E, enquanto cuidava do rosto, abanava as penas de um lado para o outro.
E fiquei mais aliviado de minhas inquietações ao saber que não sou o único a olhar para sua janela. Tive certeza disso porque, assim que ela embarcou no busão, outro passageiro comentou ao meu lado: “Essa mulher só usa calcinha brilhosa”.
Então, senhores, como prometi, vou cantá-la: “Ai, como essa moça é distraída/ Sabe lá se está vestida/ Ou se dorme transparente/ Ela sabe muito bem que quando adormece/ Está roubando/ O sono de outra gente/ Ai, quanta maldade há nessa moça/ E, que aqui ninguém nos ouça/ Ela sabe enfeitiçar/ Pois todo marmanjo da cidade/ Quer entrar/ Nos sonhos que ela gosta de sonhar/ E ser um Tutu-Marambá” (“A noiva da cidade”, Francis Hime e Chico Buarque).
*Escritor, filósofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.