Riachão
Aguinaldo Rodrigues
Publicado em: 27/07/2010 às 00:00 | Atualizado em: 27/07/2010 às 00:00
Lúcia Carla Gama*
Acho que só agora a ficha caiu: o Riachão está à venda. Não sei o preço cobrado e nem sei se aquilo ali tem valor que o dinheiro possa pagar. Mas o fato é que está à venda. Tá bom que esta é outra época, meninos adultos, virando pais, outras relações estabelecidas, adultos ficando velhos e a civilização tomando conta do que era no meio do mato.
Localizado num braço de igarapé do banho que um dia foi a Ponte da Bolívia, guardo do Riachão deliciosas lembranças. Antes e primeiro de tudo da água farta e escura, que certamente lhe rendeu o nome de
batismo. Havia uma época do ano em que o rio particular ficava tão cheio que inundava uma ilha bem no meio do sítio, encostando na ponte de madeira que dava acesso a dita ilha. Nadar ali, naquelas condições, era uma aventura e tanto assim que comecei a freqüentar o local, comuns sete, oito anos. Também era aventura descer, levada pela força das águas, até o tronco que dividia o Riachão do sítio vizinho e depois subir de volta, literalmente, contra a correnteza.
Lugar de areias brancas e escuras, o Riachão fica onde hoje é o bairro Nova Vitória. Ali, nas redondezas, há uns 25 anos, havia enormes reservas de areia que Alex, André, Lulinha e eu explorávamos algumas vezes a pé, sol fritando os miolos. Eram tão grandes os montes que nos divertíamos escorregando sobre papelões e, àquela altura, imaginando estar nas dunas nordestinas. Também arriscamos ali o primeiro contato com o volante num Fusca branco que não convém contar a origem. Era uma aventura dirigir na estrada arenosa, esburacada e alagada em tempos de inverno amazônico, quando chove num dia e no outro também, mas nós nos divertíamos a não mais poder.
Aliás, foi numa época dessas, de inverno, que voltando do Riachão para casa, papai achou que podia transformar, por um momento, o AM-5990 num barco e passou com o Fusca no meio de uma enorme poça d’água. Foi entrar e o carro alagar completamente. O que restou foram as sandálias flutuando e o vô Petrônio voltando no dia seguinte para resolver o caso. Nós pegamos carona naquele final de dia.
Domingos eram os dias de Riachão. Num tempo em que a fiscalização de trânsito não era das mais rigorosas, nós íamos apertados em carros pequenos ou, um tempo depois, quando as coisas melhoraram, íamos de caminhonete, atrás, na carroceria. Tinha cantoria e piadas no caminho.
Chegando lá havia churrasco, quase sempre coordenado pelo Joãozinho, botafoguense desses chatos, mas gente boa, que já não está mais entre nós. Havia também um vôlei disputado a ferro e fogo sobretudo pelo Alex e André. Lembro direitinho do tamanho do bico de um e da expressão de raiva do outro quando a vitória nas partidas de brincadeira não vinha. Havia a turma do baralho, sentada à mesa, um olho nas cartas, outro no ambiente e as línguas – afiadíssimas – trabalhando sem parar. E, havia, ainda e claro, muita, mas muita mesmo, conversa fiada. E gaiatice como as que reproduziam antigos “reclames”, inventados ou verdadeiros: “Não existe mulher frouxa, seu pau que é fino. Se seu pau é fino, tome Engrossolino. Engrossolino é da Bayer, e se é da Bayer é bom!” e “Cagar todo mundo caga, mas cagar com elegância só nos penicos da Casa Bragança, de Pixita e Cia”. Nunca mais esqueci estas pérolas, que acabei usando recentemente, devidamente adaptados, na apresentação de um trabalho em equipe na pós-graduação.
Rodeado de areia por todos os lados, o Riachão produzia muito jambo. Nos tempos desta fruta amazônica os pés das árvores ficavam atolados da frutinha vermelha, tinha tanto que, de verdade, fazia lama. Também tinha caju, mas em quantidade infinitamente menor.
E foi no campo deste Riachão que assisti uma das maiores manipulaçõesd e resultado de um jogo de futebol, num tempo em que a cartolagem e a compra de árbitros eram coisas muito bem escondidas. Alex e André fazem aniversário com três dias de diferença e, claro, a festa era uma só. Num ano qualquer o tema da festa era futebol, com uma disputa entre Flamengo e Vasco. Os primos compunham os times de cada um. Nem lembro quem era Flamengo e quem era Vasco, mas o certo é que o jogo teria que terminar empate. De qualquer jeito, sem nem ser levados em conta o talento e a disposição de jogar de cada atleta. E assim foi: com pênalti arranjado, batido e repetido e o fim do jogo antes do tempo, o placar foi de um a um. Tempos depois, com eles já maiores, houve uma disputa de vôlei para comemorar os aniversários, mas àquela altura já não dava mais
enganá-los com tanta facilidade e o time do Alex acabou vencendo para desespero do André e seu bico de meio metro.
Além dessas, são muitas as lembranças do Riachão. As festas juninas, os jogos da Seleção assistidos ali, as músicas ouvidas, a alegria pelo encontro, as crianças – hoje homens e mulheres – correndo e fazendo barulho, a mesa de ping-pong, as histórias da dona Idá, a fofoca que não falta em lugar nenhum do mundo, os cafés da manhã, as noites estreladas que Lulinha, André, Alex e eu curtíamos do alto da caixa d’água e nas nossas filosofias juvenis falávamos da imensidão do mundo, da vida, dos mistérios e da expectativa de uma noite ver um disco voador pousando no antigo campo de futebol.
Pode ser que o tal disco pouse, um dia, ainda, e, que pena, nós não estaremos mais lá para ver. Pela caixa d’água no lugar de água farta no meio da imensidão de areia nós já passamos, como o tempo, que faz com que nada do que foi seja de novo do jeito que já foi um dia.
* A autora é jornalista