Uirapuru do busão e esses meus colegas

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 17/07/2010 às 00:00 | Atualizado em: 17/07/2010 às 00:00

Neuton Corrêa*

Ao entrar no 451, no núcleo 3 do bairro Cidade Nova, para fazer integração com o 447 ou com o 439, no bairro Novo Aleixo, ouvi uma voz aguda que penetrava cada cantinho do busão. Nem mesmo a multidão que se acotovelava pendurada no coletivo impedia a voz de se alastrar pelos ouvidos dos passageiros. Era um som tão poderoso que até o ronco do motor se acanhava para ouvi-lo.

Antes de passar pela catraca, olhando por baixo da fila de braços suspensos na posição de mãos ao alto, tentei identificar quem era o dono daquela voz que a alternava entre o cantar e o falar, mas não consegui achá-lo. Então, usando minha experiência de passageiro-repórter, estrategicamente, fiquei perto da cobradora, dizendo para mim mesmo: “Você vai apenas ouvi-lo”, mas não houve jeito. Toda vez que ele cantava eu esticava a cabeça, olhando para trás.

E mais curioso fiquei quando o ônibus alcançou o núcleo 16, onde os passageiros da posição de vítimas de assalto começaram a descer e a abrir visão para mim. Olhei outra vez para trás, mas, ainda assim, não consegui visualizá-lo. Porém, já dava para perceber que estava acompanhado de uma mulher de beleza e forma exuberantes. Com pouca gente no busão, a voz ficou a mais nítida.

As canções que cantava e depois explicava para sua parceira de viagem ficaram tão claras que até pude acompanhá-lo (no pensamento). Lembro, por exemplo, quando ele cantou: “Eu quero ver/ Este sorriso em tua boca/ Quando esse cara que te abraça/ Te abandonar cabeça oca”. E informei para mim: “Essa música é do Abílio Farias”, enquanto ele dizia para o mulherão: “Isso vai acontecer com ela”.

Quando o busão entrou no Novo Aleixo, perto de onde eu desceria, ainda não conseguia vê-lo. Mas o pensamento já me obrigava a imaginá-lo magro e alto ou gordo e alto. Porém, amigos, os sentidos nos enganam, segundo René Descartes: acordamos sorrindo quando o sonho é agradável, e, assustados, quando nos perturbam. Parece real, mas não passa de sonho. Que engano maior do que a febre? A pele arde; às vezes, parece que vai pegar fogo, mas, ao invés de queimar, faz-nos tremer de frio.

Nada de filosofia cartesiana. O engano estava ali, de novo. Procurava um homem grande e o que eu via era apenas a pontinha de uma cabeça com cabelos grisalhos e as mãos segurando o acento da frente. E, como ainda dava tempo, saí do lugar onde estava e me posicionei ao lado dele, para ouvi-lo interpretar Valdic Soriano, balançando as pernas, sentado, sem tocar os pés no assoalho do ônibus.

Depois dessa apresentação não resisti, pedi-lhe autorização para tirar sua foto e ele não se fez de rogado e ainda fez pose. Cliquei o que pude, pedi o número de seu telefone e, apressadamente, puxei a corda para descer na padaria onde costumo fazer integração. Mas, para minha sorte, lá ele desceu também, perguntando-me:

– Pra que é isso?

– Eu trabalho em jornal. Vou sugerir para o pessoal do Manaus Hoje que faça uma matéria sobre o “Uirapuru do busão”.

E ele:

– É aquele jornal de cinquenta centavos, da A CRÍTICA?

Disse-lhe que sim e ele falou:

– Ei, eu conheço teus colegas. Eles sempre vão lá no meu trabalho!

Animado pela coincidência, perguntei:

– E o senhor trabalha onde?

– No Motel Serpente.

O 447 apareceu e eu me despedi do cantor, pensando: “Esses meus colegas…”.

Filósofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.

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