Delicado
Aguinaldo Rodrigues
Publicado em: 02/07/2010 às 00:00 | Atualizado em: 02/07/2010 às 00:00
Neuton Corrêa*
Apoiando-se com dificuldade na porta dianteira, a passageira tentava embarcar na viagem quando o motorista a advertiu: “É lá por trás!” A mulher pareceu não haver entendido o aviso e, com a mão direita à altura do joelho direito, e a mão esquerda, no capô do motor, seguiu seu esforço para subir no coletivo. O motorista, porém, novamente, olhou para ela e repetiu, pausadamente: “É lá por trás”.
Pensei que o motorista iria seguir viagem, afinal havia lugares de sobra e, até porque, em mais alguns segundos, a mulher já estaria acomodada. Mas não! Ele tirou as mãos do volante, mexeu na janela ao lado do retrovisor, jogou o corpo no encosto da poltrona e, com as mãos na cintura, balançou negativamente a cabeça e repetiu, desta vez, em tom ríspido: “Minha senhora, já disse: a entrada é lá por trás”.
Observando a cena, revoltado, pensei em meter meu bedelho na situação, mas me contive. Contive-me não por vergonha, mas por covardia, mesmo! Pensam que é fácil? A última vez que me envolvi em discussão no busão quase sobrava para mim. Foi por causa de troco. Tentei ajudar uma cobradora, mas o passageiro me olhou com cara de ameaça e disse: “Quem te perguntou?” Depois disso, peguei meu uxi e fui.
Enquanto controlava o impulso, minha cabeça lembrava do Lazareno Garapeiro. Lazareno foi meu vizinho de infância e meu parceiro de primeiras noitadas. Era um grande amigo, principalmente no verão, quando dava um jeito de escapar com a bicicleta cargueira de seu pai para carregar tala de papagaio que a gente tirava na copeira do Campo Grande. Mas ele sempre foi de falar pouco. Um caladão. Lazareno só abria a boca para decidir.
Nos últimos anos, meu amigo aprimorou a técnica de falar o essencial. Tanto o é que ganhou um apelido: “Delicado”. Delicado porque não costuma dar bom dia aos clientes que frequentam a lanchonete que montou na Avenida Amazonas. Mas pensem que isso é problema. Por causa de sua delicadeza, a lanchonete tornou-se um das mais badaladas do bairro. Virou lenda.
Para se ter uma ideia, ele só entrega o pedido com o dinheiro na mão. Deixa isso bem claro nas dezenas de placas que pregou na parede do comercio: “Fiado só amanhã”, “Liso aqui não faz festa”, “Fiado só na JP” e por aí vai.
Uma das delicadezas que testemunhei chegou a me deixar preocupado. Eram dois rapazes. Chegaram desconfiados, olharam para um lado e para o outro, leram as placas e sentaram-se a uma mesa ao lado. Um deles levantou o dedo e pediu:
– Traz uma cerveja.
Do balcão, Lazareno apenas cerrou o polegar e o indicador e esticou os outros três dedos. Mas o cliente insistiu:
– Traz uma cerveja.
Lazareno respondeu:
– Três reais.
Os rapazes tiraram o dinheiro, colocaram na mesa e o Lazareno entregou a garrafa, nevada como canela de pedreiro, que é sua marca principal. Os dois apreciaram a bebida e, de novo, pediram:
– Traz uma cerveja.
E, mais uma vez, Lázaro exibiu os dedos. E assim foi até a quinta cerveja.
Acontece que, lá pelas tantas, um dos rapazes meteu a mão no bolso e foi ter reservadamente com meu amigo. Mostrou-lhe um celular propondo trocar uma cerveja pelo aparelho. Lázaro não falou nada, apenas abriu a mão em sinal de “espera aí”. Ele se abaixou, puxou uma gaveta velha e a soltou no balcão acintosamente, dizendo:
– Tu sabes o que é isto? E ele mesmo respondeu: Isto aqui é um celular, isto aqui é uma gaita, isto aqui é um anel, isto aqui é um cordão e foi puxando os objetos de sua caixinha de fiados.
Quando me acordei daquelas lembranças, o motorista estava resmungando: “Porra, toda vez essa mulher entra no ônibus se arrastando e desce correndo. Pensa que sou leso!”
*Filósofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.