David e Golias

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 15/06/2010 às 00:00 | Atualizado em: 15/06/2010 às 00:00

Ilustração: Myrria

*Neuton Corrêa

David inspecionava todos os ônibus que faziam escala na parada onde eu esperava o busão para ir ao trabalho, na tarde de segunda-feira que passou. Ele deixava o motorista abrir as portas, olhava para dentro do coletivo, ameaçava embarcar, mas, impedido pelos passageiros, desistia, chorando. Por fora, contido, apenas gemia; porém deixava parecer que, por dentro, chorava como um bezerro desmamado.

Sim, David parecia um bezerro enjeitado. Ele olhava para frente e para trás e, depois que o busão continuava a viagem, corria desesperadamente atrás do veículo até onde o fôlego lhe permitia. Um detalhe curioso me chamou atenção: David só atacava veículo do transporte público. Um cacareco da TAP (Transporte Ana Paula), passou por ali e ele nem deu bola.

Quem não viu a cena anterior, poderia jurar que David estava surtando. Talvez estivesse mesmo. Parecia querer dar cabo à própria vida. Contei ao menos seis vezes os gestos de bravura dele, como um guerreiro, tentando parar os ônibus. E arriscados nem eram os ônibus. Os carros é que eram o problema, pois houve um momento que seu desespero foi tanto que ele atravessou a rua para tentar seguir os coletivos que vinham em sentido contrário.

Em uma dessas idas e vindas, achei que David se acabaria na roda de algum carro. Sorte é que uns motoristas desviaram e outros frearam quase em cima de seu pequeno corpo. E dava para perceber que ele não tinha costume de andar em uma pista movimentada, ainda mais naquela tarde de Sol, na rua Timbiras.

Num desses vaivens, senti o impulso de ajudá-lo, mas me acovardei pensando que aquela gente que estava de passagem por ali poderia achar que eu estava mais louco do que o David. Senti minha consciência aliviar um pouquinho quando uma amiga, lourinha, da altura dele, pulou em suas costas convidando-o para brincar.

Senhoras, amigas do busão, não posso descrever detalhes da cena para não ofender o pudor alheio. Aconteceu que ela montou em suas costas e começou a roçar o toco da coxa na traseira do David, com um apressadinho vai-e-vem. Mas ele não queria conversa! Tanto que a expulsou mostrando-lhe os dentes e franzindo a cara. Naquele momento, o que ele queria era olhar para os ônibus.

Depois dessa cena libidinosa, não sei o que aconteceu com David. Meu busão, o alimentador 043, apareceu em frente à escola estadual Dom João de Souza Lima e decidi que estava na hora de partir. Eu já havia perdido tempo demais. Embarquei e ainda fiquei olhando, torcendo para ver se ele voltava para a casa.

Eu estava compadecido com o David, porque o conheci antes de ele ficar perturbado. Minutos antes o vi subindo a Rua 12, vindo do Conjunto Boas Novas, pela avenida das Torres, na companhia de uma mulher magrinha que se protegia do Sol com uma sombrinha lilás, cheia de florzinha. A negra cor de Davi, seguindo suas pegadas, brilhava de longe e ele caminhava todo orgulhoso.

David agia como um guarda-costas da mulher. Tanto o é que, assim que ela se sentou no banco da parada de ônibus, ele, ainda vaidoso, deitou-se debaixo dela de peito para baixo, esticou as pernas para trás e cruzou as mãos para apoiar a ponta do queixo sobre elas; manteve o olho em patrulha pelo ambiente e fechava a expressão quando alguém se aproximava dali.

Toda essa pose de David mudou depois que o 304 parou ali. Sua companheira nem parecia que ia entrar naquela viagem, mas, rapidamente, pulou do banco, perguntou do motorista se ele passaria pela rua Recife e embarcou, apressadamente. David, um cãozinho vira-lata, que até aquela hora não tinha nome, começou a lutar com o ônibus, fazendo-me imaginar ali o duelo bíblico entre David e Golias.

*Filósofo, mestre em Sociedade e Cultura/Ufam.

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