O bêbado legalizado

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 15/06/2010 às 00:00 | Atualizado em: 15/06/2010 às 00:00

*Neuton Corrêa

O 651 ainda estava travado no engarrafamento de todos os dias, na avenida André Araújo, porém, mesmo assim, o passageiro equilibrava-se como se o veículo estivesse em solavancos. Ele ia para frente e para trás, de um lado para o outro, e não conseguia levar a mão onde mirava. Ao se apoiar, desequilibrou-se novamente quando o motorista acelerou o ônibus.

A dança do busão fez o passageiro se sentar. Acomodou-se na cadeira e balbuciou algo que eu não consegui entender. Poderia ter feito um esforço para ouvi-lo, mas ele não colaborou. Baixou a cabeça e, com os olhos fechados e o tronco em rotação e translação, começou a falar de si para si. A única coisa que deu para entender foi quando ergueu o pescoço e gritou: “Estou aqui porque estou bêbado”.

A explicação dada por ele quebrou o silêncio que se fazia na viagem. Ao meu lado, uma pessoa comentou: “Não dá nem para perceber”. Mais atrás, perto da cobradora, uma jovem balançou a cabeça em sinal de reprovação. O motorista olhou pelo retrovisor e eu, que estava pendurado olhando para as janelas do lado direito, posicionei-me em sentido contrário para observá-lo melhor.

Meu esforço, no entanto foi em vão, porque, depois que ele gritou, começou a andar no ônibus. Parecia que iria descer, mas escolheu a porta errada. Ao invés de ir para frente, foi para trás e, ao se deparar com a cobradora, trocou algumas palavras com ela. Talvez estivesse disfarçando o engano, mas logo em seguida algumas pessoas apontaram os dedos para frente e orientaram: “A saída é por ali”.

O bêbado, como todo bom bêbado, não perdeu a pose e voltou. A essa altura, o busão já estava chegando ao ponto onde eu deveria desembarcar, mas, para acompanhar o desembarque do meu companheiro de viagem, resolvi descer no ponto seguinte, bem distante do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-AM) para onde eu iria.

Assim, pude vê-lo caindo no colo de um cidadão de cabelos brancos que viaja perto de mim, sentado em uma cadeira reservada a idosos. E ele, outra vez, não perdeu a deixa. Olhou para o cidadão e disse:

– Sabe por que eu estou bebendo?

E o idoso apenas balançou a cabeça negativamente.

– Porque hoje é o aniversário do meu pai. Ele está completando 78 anos. Tá velhinho, mas tá teso assim como o senhor.

Depois disso, ele olhou para mim e perguntou:

– Onde nós estamos?

– Acabamos de passar pela Sefaz, respondi.

Ao ouvir a resposta, ele pediu que o motorista o deixasse na próxima parada. Mas antes de desembarcar importunou o motora:

– Motora, eu sou o único legalizado aqui neste ônibus.

Por quê? Retrucou o motorista.

E o bêbado explicou:

– Eu tenho carro, mas toda vez que eu bebo, eu pego o ônibus.

Nessa hora, olhei para o bolso de sua calça e vi, pendurado, um molho de chaves de carro.

*Filósofo, mestre em Sociedade e Cultura/Ufam.

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