A tradutora

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 15/06/2010 às 00:00 | Atualizado em: 15/06/2010 às 00:00

Ilustração: Romahs

*Neuton Corrêa

Da estação de ônibus da Matriz, no Centro, já se podia observar o navio atracado no cais. Não dava para vê-lo inteiramente, mas, pelos botes salva-vidas pendurados a boreste e mastros com duas bandeiras estrangeiras que ultrapassavam o telhado dos armazéns do Porto de Manaus, podia-se concluir que um novo grupo de visitantes havia acabado de desembarcar na cidade.

Tive a certeza da presença estrangeira, assim que o 422 parou em frente à estação hidroviária. Os turistas ainda desciam a rampa que dá acesso ao setor de embarque e desembarque. Eram jovens falantes, de olhos espichados, tomando os ônibus que os aguardavam no estacionamento, e gente de pele avermelhada, senhores e senhoras de cabelos brancos, que ficaram ali mesmo pelo Centro.

Naquela manhã de domingo, havia ido ao porto para esperar meus pais, que também desembarcariam ali, não do cruzeiro, mas do Novo Aliança, que vinha de Parintins cheio da cabocada. O problema é que o anel de noiva, que geralmente chega às 9h, já estava atrasado uma hora. Então, resolvi fazer dos turistas minha atração. De longe, passei a segui-los, curioso para captar de seus olhares e gestos a impressão que tinham da cidade.

Não adiantaria chegar mais perto: primeiro, poderia incomodar os visitantes; depois, não entenderia nada, mal arranho o português. Aliás, ainda tentei captar o idioma com o qual se expressavam, no entanto quase nada eles falavam. O que se ouvia mesmo era o tradutor, que mais balançava os braços do que falava.

Por causa disso, pude perceber a distância as coisas que ele mostrava. A igreja de Nossa Senhora da Conceição, por exemplo, foi a primeira atração apresentada. De lá, o tradutor conduziu o grupo de velhinhos branquelos para o prédio da Alfândega e depois para o Relógio Municipal da Eduardo Ribeiro.

Da posição em que eu estava, seria possível notar o brilho dos olhos verdes e azuis, porém não consegui notar neles nenhuma expressão de encanto. Pareciam pedras de gelo se movendo intactos sob o calor dos trópicos. A frieza dos visitantes aumentou em mim a vontade de poder ouvi-los. Por alguns instantes, até imaginei que o coração deles estivesse nas máquinas fotográficas que carregavam no pescoço, já que o clique que faziam era a única coisa que deles brilhava.

Pensando nisso, desisti de segui-los. Eu fui rumo à Manaus Moderna à espera do Novo Aliança e eles subiram a Eduardo Ribeiro. Supus que estivessem a caminho do Teatro Amazonas. Afinal, vir a Manaus e não conhecer o prédio símbolo da exploração do leite dos caboclos e arigós do tempo da borracha é a mesma coisa que ir a Roma e não acenar para o papa.

Mas eu estava enganado. Descobri isso quase uma hora depois, quando estava à beira do rio Negro, sugando a terceira latinha ao lado de uma caixa de isopor. Não fui eu quem notou a presença dos turistas por ali. Foi a dona da venda, uma senhora com parcos dentes, que cobria a cabeça com uma touca rubro-negra, com um urubu bordado à frente, que me cutucou:

– O que essa velha vem fazer aqui?

Olhei para trás e vi a cena que já tinha visto antes. Ela estava apontando para uma mulher fina como uma tala de papagaio, com a coluna ondulada como costas de camelo, que caminhava curvada para o chão e chutando a perna direita.

Em seguida, quando o tradutor olhou para as ruínas do mercado Adolpho Lisboa e começou a falar, a vendedora de água e cerveja começou a traduziu para mim a conversa:

– Ele está dizendo que o mercado foi destruído pelo prefeito que passou e que o atual não tá nem aí. Por isso, esse prédio, construído pelos parentes de vocês (dos ingleses), está se acabando.

Ri da imaginação da tradutora e pedi mais uma lata d’água.

*Filósofo, mestre em Socìedade e Cultura/Ufam.

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