O apelo da velhinha
Aguinaldo Rodrigues
Publicado em: 26/09/2010 às 00:00 | Atualizado em: 26/09/2010 às 00:00
Neuton Corrêa*
Esperei a fúria do corpo passar e ansiei que a luz da alma chegasse (como se isso fosse possível) para poder escrever este episódio. Já se foram cinco dias. Agora acho que posso reportá-lo sem o furor que a situação causava. Posso até não conseguir, mas prometo-lhes vigiar-me para não ser contaminado pelos sentidos. Eles, nossos sensores, são a porta de entrada para o engano.
Talvez, se, naquele dia, tivesse-me colocado diante de uma folha de papel em branco, armado com uma caneta e o dolo literário, teria começado o texto com uma ofensa. Apressadamente, seria um desabafo dirigido àqueles que me tiraram do sério na manhã da segunda-feira que passou, mas poderia atingir vossa sensibilidade, amiga leitora e amigo leitor. Escreveria que todos os motoristas de ônibus são iguais.
E aqui começa a questão. Ninguém é igual a ninguém. Talvez, no máximo, entre as pessoas, haja semelhança. E semelhança não significa igualdade. A semelhança é uma analogia, um paralelo, uma aparência. Logo, trata-se de uma certeza, absolutamente, não verdadeira.
Naquele dia, pensei. Esta semana não farei nenhuma crônica. Cheio de mim, puto da vida, pensei: “Esta semana, os amigos e as amigas do busão que me perdoem: não farei nenhuma crônica. Vou escrever um artigo. É sacanagem demais”. Depois, voltei atrás e conversei com a voz mais ponderada de minha consciência, que me dizia: “Engana eles dizendo que tu vais fazer um artigo-crônica ou uma crônica-artigo”.
A segunda-feira passou e eu não coloquei uma letra no papel. No dia seguinte, acordei achando o tema irrelevante. Ainda mais porque havia acabado de ter outra ideia: falar de um ceguinho que encontrei no busão um dia desses (escrevo sobre ele não sei quando). Depois, lembrava que, na semana passada, conversamos sobre esse tema que estava bolando: O desrespeito dos motoristas de ônibus com os idosos.
Lembram? Na semana passada, contei a história do velhinho que correu para a porta de trás para entrar sem pagar (é lei) e o motora não a abriu. Pois é: na segunda-feira, voltei a testemunhar outra humilhação contra o povo da terceira idade. Era uma mulher magrinha, magrinha, de cabelos branquinhos, branquinhos. Estava só, sentada, na parada de ônibus em frente ao Clube dos Oficiais da PM, ao lado do jornal Manaus Hoje.
Eu a vi assim que passei pelo portão da empresa e parei para conversar com um colega de redação que estava chegando ao trabalho. Nessa hora, a mulher estava esticando o braço, pedindo parada ao motorista do 600, mas ele passou direto.
Foi aí que comecei a generalizar as coisas, quando disse ao colega de redação: “Motorista, tudo é a mesma coisa”. Foi essa frase que embolou depois minha cabeça, porque hoje lembro que nem todos motoristas são assim. Já vi motora atencioso, paciente e tratando idoso com carinho de filho bondoso.
Mas, naquela segunda-feira, não me lembrava disso. Aliás, fiquei ainda mais furioso, quando passou o 676. A mulher levantou-se do banco de concreto onde sentava e esticou o braço, de novo, e outra vez o motorista queimava o ponto. A velhinha fez sinal para o terceiro carro, e nada!
Houve um outro busão que ela queria chamar, mas não pôde, porque o motorista, como quem foge de alguém ou de alguma coisa, esquivou-se por trás de uma carreta. Minha revolta aumentou ainda mais.
Despedi-me do amigo e apressei o passo para alcançar a parada e, ao chegar lá, a passageira me fez um apelo: “Pelo amor de Deus, moço, faça parada pro meu ônibus, porque os motoristas não querem parar para mim”.
E assim procedi, imaginando-me daqui a mais alguns anos.
*Filósofo, jornalista, escritor.