Comunista marxista, radical, espírita!*

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 15/09/2010 às 00:00 | Atualizado em: 15/09/2010 às 00:00

Chico Lima**

O avião entrou em procedimento de pouso, olhei no relógio: eram 17h20min. Nas minhas contas, davam 55 minutos de vôo desde que decolamos de Eirunepé. Mal podia adivinhar que minha mania urbana de contar o tempo de deslocamento nas diuturnas migrações pendulares seria inútil pelos próximos oito dias. Ortiz, o piloto da minúscula aeronave, imediatamente advertiu-nos: “deixem primeiro a poeira baixar, depois abram a porta.”

Parecia mais uma pista de pouso clandestina, dessas usadas pelo narcotráfico para a rota da cocaína. Baixada a poeira, pude ver o saguão do aeroporto, aliás, “saguinho” seria a designação mais apropriada para aquela inominável tenda, construída como prolongamento do depósito de combustível, um verdadeiro “puxadinho”. Ao leste, pude contemplar a estrada de barro que rasgava o morro um tanto quanto íngreme para o padrão de nossa vasta planície. De repente despontou, no ponto mais alto da estrada, um pequeno trator agrícola com uma espécie de carroceria.

Cheguei a pensar que se tratasse de algum agricultor se dirigindo para o roçado, a fim de transportar a colheita do dia. Diametral engano: tratava-se sim de uma espécie de “transporte especial” que a Prefeitura disponibilizara para levar os passageiros do aeroporto até o hotel municipal.

O interessante é que aquele tratorzinho, conhecido nas redondezas como jerico, era parte dos implementos agrícolas distribuídos por um certo Programa de desenvolvimento agropecuário intitulado “Terceiro Ciclo”, o qual, por meio de um trocadilho, o povo passou a chamar de “Terceiro Circo”. Claro que era do “Terceiro Circo”, não podia estar enganado! O ícone apiforme, gravado no capuz daquele veículo agrícola, denunciava a origem do intrigante transporte de passageiros. Bom, pelo menos para aquilo servira o “Terceiro Circo”, pensei baixinho.

O tratorista recolheu nossas bagagens, enquanto tomávamos nossos assentos na curiosa condução. Tratei de sentar-me próximo às bagagens, a fim de minimizar o irritante chacoalhado da carroça. Não havia nenhum portal para recepcionar os que se aventuravam àquele longínquo município, mas, se o houvesse, certamente nele estaria inscrita a mesma frase que Dante apôs na porta do Inferno: “Deixai para trás toda a esperança ao passar por esta porta”.

Foi assim que me senti ao saber, naquele momento, que só haveria vôo de volta dali a oito dias, na próxima quinta-feira. Nesse momento, comecei a perceber que meu célere ritmo urbano seria, no mínimo, ridículo naquele quase ermo lugar incrustado em tamanha imensidão verde, onde os habitantes seguiam o ritmo sereno do rio Juruá.

Quando chegamos ao hotel, fui recebido pelo administrador, seu Getúlio, que gentilmente pegou minha mala e a caixa de apostilas que levara para o treinamento dos professores. Depois de alojado em um dos “confortáveis” cômodos, dirigi-me para o lavabo, a fim de retirar a poeira que se acumulara naqueles dois quilômetros do aeroporto ao hotel. Só então percebi que, além da poeira, havia em minha pele vários pontos intumescidos, verdadeiros hematomas feitos por um mosquito de que só naquele momento ouvira falar: o pium. Se bem que achei o nome do inseto um pouco irônico, PI 1 (um). A meu ver, ele seria mais bem designado se o tivessem chamado de PI 1000 (mil), pois era assim que me sentia, vítima de mil ferroadas.

Depois de usar o conhecido expediente do álcool para aplacar a dor decorrente das aguilhoadas dos mosquitos e de recompor meus trajes, encaminhei-me para o refeitório. De lá, ainda pude contemplar um finalzinho de pôr-do-sol, belíssimo, diga-se. A voz da cozinheira arrancou-me daquele êxtase vespertino: “Professor, o senhor quer peixe ou galinha?” “Peixe, é claro”, respondi-lhe incontinênti.

Cuidei então de tomar um dos assentos à mesa. Loquaz que sou e desejoso de encontrar um interlocutor para a longa noite que se anunciava, procurava fazer perguntas sobre o município, principalmente sobre a política local, assunto predileto em minhas viagens rurais. Logo procurei saber sobre as correntes partidárias do município. Queria elementos para uma análise de conjuntura da correlação de forças da política local, mas elementos que permitissem uma análise o mais desapaixonada possível. Todavia ninguém presente à mesa parecia ser capaz de falar com isenção do assunto, envolvidos que estavam com o partido hegemônico da localidade.

Minha esperança era a chegada do Carlos, espécie de cientista político do lugar, anunciado como o arauto do comunismo nas redondezas, núncio da economia planificada ribeirinha, emissário da Comuna do Juruá. Pelo menos era o que se podia depreender dos comentários que seu Getúlio me fizera até ali a respeito do saber político descomunal de tal personagem. Sempre que alguém não sabia responder a alguma pergunta por mim formulada, logo seu Getúlio intervinha: “Quem sabe lhe explicar isso direitinho é o Carlos”, assessor do Prefeito. Às vezes, a fórmula mudava para: “Olha isso eu não sei lhe explicar não, mas o Carlos…”

Quase no fim do jantar, assomou-se à porta do refeitório uma figura que impunha respeito pela imponente e espessa barba. A calça jeans desbotada, cingida por um cinto de couro, a camiseta branca com a efígie do Che, a bolsa a tiracolo e o inconfundível calçado de sola preso aos pés por tiras de couro dispensavam apresentação: “Carlos, certamente.”, disse eu mirando a característica figura. “Sim, Carlos! e o senhor?” “Muito prazer, sou o professor Francisco, do Projeto Educação Contextualizada.”

Esperei que meu interlocutor se acomodasse à mesa e servisse seu prato. Ele parecia mais ávido que eu por uma conversa sobre política. Entre uma garfada e outra começou a me fazer uma verdadeira inquisição a respeito de minhas ligações políticas em Manaus e de meu pensamento a respeito da política econômica do governo federal. Depois de responder com solicitude a todas as suas perguntas, decidi que chegara minha vez de aplacar a curiosidade acerca da correlação de força local.

Com entonação de cientista político abalizado, meu interlocutor tratou de me explicar a binária natureza das forças políticas atuantes na cidade: de um lado a situação, representada pelo Imperador Francisco Barroso e seus asseclas; de outro, a oposição, representada pelos pongós, ou seja, pelos traíras, sempre disposta a sublevar-se e tomar o poder do Executivo local.

Após sua detida explicação, indaguei curioso: “E você, Carlos, qual sua orientação ideológica?” Em tom de quase declamação, Carlos se definiu: “Sou comunista marxista, radical, espírita!”. Dali por diante, eu ouviria muitas vezes essa sincrética frase que reunia o mais absurdo paradoxo em uma só definição: o materialismo e o espiritismo.

Bastava pedir àquela emblemática personagem que falasse sobre a política local para ele disparar em tom solene e empolado: “Eu, comunista marxista, radical, espírita creio que a conjuntura política que se nos apresenta é…” Tal oxímoron constituía mesmo a fórmula para abertura de seus sofísticos discursos.

Contudo, não só ele se caracterizava com esses quatro adjetivos como também listava outros eminentes políticos da pequena cidade que partilhavam de suas mesmas convicções político-espirituais. Dentre os ilustres sectários do movimento estava o excelentíssimo Prefeito, Imperador Francisco Barroso, como ele próprio gostava de definir. “O Barroso é comunista marxista, radical, espírita! O Barroso é um bruxo”, arrematava.

Foi pensando em pôr à prova a solidez desses discrepantes princípios político-espirituais, e por uma absoluta falta do que fazer naquela cidade da calha do Juruá, que, depois de ter cumprido minha missão em apenas um dia, resolvi insuflar a turma hospedada no hotel a preparar um despacho para a intrépida figura que se gabava, entre outras pavulagens, de ter corpo fechado e contar com a proteção de espíritos de luz.

Era sexta-feira. O pessoal do hotel me havia dito que o cientista antropo-sócio-político-religioso só voltaria por volta da meia-noite, pois a sexta era consagrada ao seu passatempo predileto: uma boa cachaçada, regada a uma polêmica discussão filosófico-político-religiosa.

Era isso que o entretinha nas horas de ócio, o que, ali, representava mais de dois terços do dia. Mas a sexta-feira feira era um dia especial, pois não precisaria descer mais cedo no outro dia para a Prefeitura. Então gastava suas horas em homéricas discussões à mesa do bar, desafiando os “pongós” a resistirem ao seu implacável discurso. Diziam mesmo que, depois que começava uma discussão, não havia quem dela o conseguisse demover antes de ver seus opositores reduzidos à situação insignificante. Gostava de ver seus desafetos reduzidos a pó. Espezinhava-os como podia por meio de frases de efeito, máximas, provérbios e fragorosas citações de O capital, de Marx. Seus adversários quedavam-se diante de tamanha “cultura”.

Na verdade, suas bravatas não passavam de mera bazófia, frases montadas como colcha de retalhos para impressionar seus rivais. Mas surtia efeito, já que por aquelas bandas não se lia nem “Zé Carioca” imagine O capital. Por volta da meia-noite, todos esperávamos ansiosos a chegada do símbolo da retórica itamaratiense, a fim de vermos sua reação diante da surpresa que lhe preparáramos.

O contínuo do hotel anunciou: “Lai vem o Carlos! Ele vem cercando galo!” – depois soube que a expressão “cercando galo” era usada na região para descrever o andar trôpego dos embriagados, que se assemelha a alguém querendo capturar um galo. Todos correram para seus respectivos quartos, que, dispostos nas laterais do terreno, tinham as fachadas voltadas para um grande pátio interno.

De lá, vimos o expoente da eloqüência política cruzar o vestíbulo, trôpego, e adentrar ao refeitório. Do refeitório, nosso eminente orador viu a luz da velas no quintal e resolveu verificar do que se tratava. De repente, ouvimos um grito cortando o silêncio da noite: “Vade retro!”, a frase que, há algum tempo, celebrizou-se quando se queria esconjurar o demo. Carlos, ao ver o despacho ali colocado, com seu nome em cruz dentro de um saco contendo unhas, cabelos, barro, logo proferiu: “Unha e cabelo de defunto, terra de cemitério: são os pongós! Eles querem me amarrar, deter minha implacável ira contra eles!”. O mestre da persuasão vocabular, que até ali a todos impusera suas idéias filosófico-político-religiosas, valendo-se de um pomposo discurso, ficou realmente impressionado com a presença daqueles elementos afro-religiosos, convencendo-se de que se tratava, de fato, de uma oferenda com finalidades maléficas.

Naquela sexta-feira, ele não jantou, como de costume, nem cantou o refrão da Internacional: “Bem unidos façamos / Nessa luta final / Uma terra sem amos / A Internacional”. Pelo contrário, voltou para o bar e continuou a beber até a manhã seguinte.

Nem bem o arrebol se anunciara, dirigiu-se à casa do Prefeito (o Imperador Barroso, como o denominava) a quem, além de líder político, tinha também por guia espiritual. “Carlos, a essa hora da manhã, num sábado! Que aconteceu?”, indagou o Imperador Barroso. Carlos narrou-lhe com sofreguidão o que acontecera na noite anterior e, mostrando-lhe os objetos votivos que recolhera do trabalho arriado, repetia com a voz ofegante: “São os pongós! São os pongós! Eles querem minar o sustentáculo da hegemonia política desta administração!”. “Calma, Carlos! Vou ensinar-lhe a neutralizar essa “coisa feita”, disse-lhe o Prefeito, a fim de arrancar-lhe daquele sofrimento. “Pegue um saco plástico preto virgem, vire-o do avesso, coloque todas essas coisas dentro, vá até a margem do rio Juruá, rodopie-o sete vezes no sentido anti-horário e atire-o bem no meio do Juruá em direção ao Oriente. Depois reze sete pais-nossos e sete ave-marias. Pronto: o rio carregará todos os malefícios que poderiam advir desse trabalho. Entendeu?”. “Entendi quase tudo, mas o que é mesmo anti-horário e Oriente?”.

O Prefeito explicou-lhe em linguagem coloquial, tendo que esclarecer que Oriente tratava-se da parte onde o Sol se levanta, e não daquele relógio “cebolão” que Carlos havia perdido no rio Tarauacá, quando da última pescaria.

Cumprido o ritual de exorcismo dos espíritos maus, Carlos pôde, enfim, recuperar-se daquela atribulada noite, dormindo ao longo de todo o dia. Na verdade, nosso destemido materialista só se sentiu completamente aliviado quando descobriu que o trabalho arriado não passava de uma peça que a turma lhe pregara. Preocupados com o comportamento depressivo que Carlos passara a apresentar por causa das possíveis conseqüências funestas do “ebó” que lhe fora preparado, os funcionários do hotel resolveram contar-lhe tudo.  Ao tomar conhecimento disso, proferiu a conhecida frase dos detetives dos romances policiais: “Suspeitei desde o princípio”.

No dia de meu regresso (oito dias depois, diga-se), quando eu me preparava para entrar no avião, Carlos dirigiu-se a mim e disse que já sabia de tudo. Interpelei-o acerca de como ele descobrira o autor da oferenda. Explicando que mantinha, em Itamarati, um Serviço Municipal de Inteligência, a Gestapo do Juruá, Carlos convidou-me, quase em tom de segredo, a fazer parte daquela excêntrica confraria que congregava comunistas marxistas, radicais e espíritas.

Enquanto eu punha a bagagem na diminuta aeronave, o curioso retor proferia: “Professor, eu sou uma pessoa bem informada, não há nada que se passe da nascente até a foz do Juruá, que eu não possa descobrir. Nada escapa à minha arguta investigação. Eu descobri que o senhor é um bruxo, por isso vim convidá-lo a ingressar nas fileiras de nossa comuna. Se o senhor aceitar, preparo o ritual de iniciação para sua próxima vinda à cidade”. Depois de dizer isso, despediu-se, exortando-me à luta por meio do refrão da Internacional: “Bem unidos façamos / Nessa luta final / Uma terra sem amos / A Internacional”.

*Texto escrito pelo autor em 2000, com base em viagem que fez ao Município de Itamarati, em junho de 1998.

**Licenciado em Língua e Literatura Portuguesa pela Ufam, com especialização em Língua Latina.

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