A despedida da Pátria
Aguinaldo Rodrigues
Publicado em: 15/12/2010 às 00:00 | Atualizado em: 15/12/2010 às 00:00
Neuton Corrêa*
Lotado e apressado, o 422, quase arrastando a traseira esquerda no asfalto, faz a curva para sair à altura do Cruzeiro, na rua Timbiras, Cidade Nova. Também apressada e atrasada lá vem ela, mas com o apoio da torcida, que grita da parada de ônibus: “Corre! Corre! Corre!” Dez enormes segundos se passam, quando perto de mim alguém exclama: “Corre, Dona Pátria!”. Estranhei, porém outra voz gritou: “Vai, Dona Pátria, vai!”
E dona Pátria apressa os passos, aperta os beiços, engelhando ainda mais o rosto, e faz todo o esforço que pode para alcançar o busão, mas o terreno acidentado do Cruzeiro e a calçada esburacada do vizinho da parada não a ajudam. O motorista ameaça partir, mas alguém lhe pede calma, enquanto uns gritam “corra” e outros, “cuidado, cuidado, Pátria”.
Finalmente, após, talvez, trinta segundos, Dona Pátria chega à porta dianteira do 422, mas ela resolve recuar. Vai para a frente do ônibus, afasta-se um pouquinho, põe a mão direita à altura da testa mirando para o número da linha para então prosseguir o embarque. E lá se foi Dona Pátria.
Acostumei-me com essa cena nos anos que se sucederam a 2001, quando fui morar na Cidade Nova. Dona Pátria pegava o busão para o Centro por volta das 7h e voltava para a Zona Norte depois das 19h. Não havia um horário pontual. Às vezes, até chegava às 22h ou 23h.
Dona Pátria foi a primeira personalidade da rua Pintassilgo que conheci assim que fui morar ali. Vamos dizer assim: morava, mas não morava. Com o tempo, fui saber que passava o dia na casa dela, no Igarapé de Manaus, e, à noite, dormia na casa da Mãe Emília, minha vizinha, presidente da Federação Amazonense de Umbanda, cuja sede situa-se defronte do jambeiro da calçada de minha casa.
Dona Pátria é uma de três irmãs idosas que dona Emília acolheu não sei quando. A mais velha, dona Dulcinda, hoje com 88 anos, há muito passa dia e noite gritando e chorando; a mais nova, a Cléa, ainda não perdeu a infância: ri de tudo e brinca com tudo e com todos que se aproximam dela, apesar de seus 65 anos. Tanta infância na velhice deixou Cléa sem os movimentos de uma das pernas. Explico: brincando, Cléa caiu e fraturou o joelho.
Dona Pátria, hoje, vale um parágrafo à parte. Era a mais sajica de todas. O rosto parecia estar sempre sério, mas o espírito estava sempre sorrindo. Aos 86 anos de idade, ainda apreciava uma cervejinha lambendo os beiços. Nas festas do terreiro, Pátria era a primeira a procurar um copo para aliviar sua ansiedade. Diziam os filhos da vizinha que ela, apesar da idade, era um âmago de piranheira. Não vergava nem com o fogo nem com o frio.
Recentemente, Dona Pátria abandonou o busão: passou a morar, dia e noite, no casarão de Mãe Emília, mas ganhou outra rotina no começo do dia: varrer as folhas da mangueira do quintalzão da vizinha. Passava a manhã ali a tirar folha e a trocar palavras com conhecidos e desconhecidos.
Na segunda-feira que passou, ainda de madrugada, ao sair para trabalhar, percebi que o barracão da umbanda estava com as luzes acesas e que todas as portas e janelas estavam abertas. O silêncio falava muito! Entrei, olhei e, sem dizer nada, dei adeus à Pátria do busão.
*Filósofo e escritor.