Highlander

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 05/12/2010 às 00:00 | Atualizado em: 05/12/2010 às 00:00

 Neuton Corrêa*

Pela janela do busão, enxerguei o China. Vestindo macacão azul, passos miudinhos, andando na rua Mário Ipiranga Monteiro, perto do viaduto, ele carregava no ombro esquerdo uma roçadeira branca e alaranjada. Não via o China há quase oito anos, desde o dia em que estava jogado na beira da rua à espera da ambulância do S.O.S. Manaus (hoje é SAMU) e/ou do rabecão do IML.

China nasceu e viveu até a adolescência na rua 31 de Março, onde também me criei. Não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, até porque era na mesma rua, mas um pouco distante de casa. Eu morava para as bandas do rio Amazonas e ele, perto da usina termelétrica. Além disso, China se enturmou mais com o pessoal do Beco do Sapo do que com os meninos do Ryota (escola estadual Ryota Oyama).

O que sabia dele, vinha da fama que ele fez.

As notícias sobre o China não eram poucas. Lembro-me da primeira, quando ele estudava a primeira série, no Sindicato (prédio construído pelo Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil que mais tarde virou escola estadual): quase morreu enforcado. Como?! Perguntei-me, diante do bochicho da rua.

Pois, de manhãzinha, depois de comprar pão, antes de ir para aula, China sumiu. Índio, irmão mais velho dele, que virou pai e mãe da família com a morte prematura dos pais, (as perdas aconteceram num espaço de um ano – nunca procurei saber o que aconteceu), saiu à procura do moleque.

O Índio tinha certeza de que o China estava escondido, fazendo manha para não ir à aula, como sempre fez. Mas, ao andar pelo quintal da casa dele, viu galhos da mangueira do vizinho balançar. Desconfiado, Índio foi investigar o que acontecia e descobriu. Era o irmão, que, ao tentar apanhar uma fruta amarelinha, perdeu o equilíbrio e caiu e só não foi parar no chão porque uma forquilha dos galhos da árvore o aparou. Ele estava seguro pelo queixo e balançava as pernas para tentar ganhar apoio.

Com a ajuda do irmão conseguiu sair da enrascada.

No dia em que ele esperava pelo S.O.S. ou pelo IML, fui avisado da situação pelo Índio, que me pedia ajuda. Imediatamente, fui. Ao chegar lá, encontrei outro amigo da 31 de Março, o Marcos, que convenceu o Índio a levar o corpo do China para a casa. E assim aconteceu!

Quando cheguei à casa do Índio, o corpo do rapaz estendido na sala. E lá, nas costas dele, a perfuração que o fez tombar. Tantos risos e nada de choro me davam a convicção de que a morte do China era um alívio para o irmão. Os risos não eram pela morte, mas pelas histórias que o Marcos contava sobre as aventuras do China.

Eu já estava animado com o velório (na verdade, não tinha nenhuma vela, porém já havia gente fazendo cotinha para comprar umas cervejas), mas S.O.S. chegou. Da ambulância, desceu uma mulher de jaleco branco. Ela foi com a mão direto no pescoço do China, olhou para um assistente, vestiu a mão com uma luva cirúrgica, apontou o dedo indicador e introduziu-o no ferimento.

Quando a mulher puxou o dedo de volta, o sangue jorrou e, no mesmo instante, China se mexeu e gritou: “Vocês pensam que estou morto, é? Eu sou é o Highlander (guerreiro imortal)”.

Depois disso, China ainda se envolveu em um grave acidente de trânsito e, desde aí, perdi o contato com o irmão dele.

Filósofo e escritor.

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