Boca da Onça
Publicado em: 27/11/2010 às 00:00 | Atualizado em: 27/11/2010 às 00:00
Neuton Corrêa*
Para captar melhor o cenário, tentei a anotar quadro a quadro, mas, no mesmo instante, ouvi que importunava os moradores do lugar: “O que é filho da puta? Nunca viu?”. Virei para trás e localizei o protesto: era uma mulher que vestia um sutiã vermelho, esgarçado, sentada ao lado de uma fogueira que assava duas matrinxãs.
Assim que fiquei de frente para ela, levantei as mãos e as baixei colocando a caderneta no bolso de trás da bermuda e a caneta, na gola da camiseta, pedindo-lhe desculpas. Entendia que a boca da ponte que engole carros, caminhões e gente de todo tipo é também o mundo para um grupo de pessoas que mora ali.
Ela não foi a única a reclamar. Notei isso quando outro morador, que dormia sobre caixas de isopor, despertou-se com os gritos da mulher. Ainda deitado, ele olhou sonolento para mim; rolou; e, debaixo da cabeça, tirou um embrulho que lhe servia de travesseiro; e, de lá, puxou uma garrafa PET, ajoelhou-se contra o paredão da ponte, arriou o cós dianteiro da bermuda e, depois de algum tempo, enroscou a tampa da garrafa, embrulhou o travesseiro novamente, afofou-o e o agasalhou sob sua cabeça.
Mas nem tudo era hostilidade, ainda mais na banca de venda de doses de cachaça, a dez metros de onde a mulher berrava. Lá, quase fui recebido com festa. Ganhei até o olhar faceiro de uma morena vaidosa que enfeitava os braços com pulseiras de miçangas coloridas. Não sei se a recepção foi porque pedi um gole de ciquenta centavos ou porque todos ali já estavam embalados. Talvez nem uma coisa nem outra.
Talvez todo mundo seja bem tratado por ali. Quem sabe não foi esse tratamento que fez o Francisco de Assis da Silva, 62, trocar a vida de uma casa, o calor da mulher e dos filhos, pela umidade debaixo da ponte. “Eu era casado e tinha sete filhos: um morreu e os outros seis me abandonaram”, contou-me Francisco, depois de me queixar uma dose. O Francisco contava sua história como se há muito estivesse esperando alguém para falar de sua biografia.
Deves, agora, estar duvidando que eu não tenha perguntado nada, mas é verdade: não perguntei nada a ele. Nem anotei. Mas ainda hoje lembro-me de que o Francisco nasceu no dia 12 de agosto de 1948, no Município de Tefé. Veio para Manaus, quando tinha 12 anos. Aqui casou e formou duas famílias, incluindo a da ponte. Voltou a Tefé nas eleições de 2002, mas só para votar: “Fui votar no Lula. Hoje ele não precisa mais do meu voto”.
Enquanto conversava com o Francisco, apareceu outro morador da ponte. Também queria uma dose, porém achei que ele não suportaria nem cheiro de aguardente.
O bêbado desistiu e o Francisco não perdeu oportunidade. Relatou-me que sua vida foi marcada por um acidente quando trabalhava como marinheiro regional: “A proa bateu no meu peito. É por isso que tenho o peito aberto”. Quando ele ia me contar o que aconteceu, outro morador dali apareceu. Era um homem de óculos de grau, vestindo uma camisa vermelha e usando chapéu de palha. Chamei-o de “Jonas Boca de Ouro”. A dentadura dele era toda assim: cheia de ouro. Também não lhe perguntei nada, mas logo ele disse: “Eu vendo peixe aqui na ‘Boca da Onça’”.
– Boca da Onça? Esse é o nome deste lugar? – perguntei.
– É, aqui é a Boca da Onça e não me pergunte o porquê.
Nessa hora, minha mulher, que retornava da Feira da Manaus Moderna, puxou-me pelo braço e disse: “Vamos, senão, tu não vai conseguir subir no ônibus”. E assim aconteceu.
*Filósofo, escritor.