De volta para a senzala

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 11/07/2012 às 00:00 | Atualizado em: 11/07/2012 às 00:00

 

Aldenor Ferreira*

Há seis meses, tornou-se rotina semanal percorrer 260 quilômetros de Jaboticabal para Campinas, no interior do Estado de São Paulo, sem me dar conta que o Brasil Colônia ainda permanece em traços, gestos e falas que podem ser ecos de um passado não tão distante dos mais de 500 anos que já se foram. Descobri isso ouvindo conversas dos outros no terminal.

Pois, toda quarta-feira, quando as luzes da cidade começam a se despertar com o descanso do Sol, desembarco no Terminal Rodoviário de Campinas. Ali, pego uma linha urbana para ir para casa. Como já comentei com os amigos do TEXTOBR, viajar é preciso, pois tenho aula uma vez na semana na Pós-Graduação da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp.

Confesso que nesse horário a visão do terminal não é muito boa. Sua moderna arquitetura é contrastada com um mar de gente que faz o lugar parecer mais com um reino de formiga de fogo depois de um curumim atirar uma pedra em cima do castelo, pois, do terminal partem ônibus intermunicipais, interestaduais, metropolitanos e linhas urbanas.

Aproveito esse cenário para exercitar meu olho e ouvido de Cientista Social, dedicando minha atenção às conversas dos inúmeros usuários que aguardam nas filas seus respectivos ônibus, estando, eu também, à espera de um.

Nas Ciências Sociais, isso se chama observação, uma técnica de pesquisa. Seria mais ou menos como exercer a técnica da participação-observação, na qual o observador faz parte de um grupo e aproveita essa situação para observá-lo. No meu caso, integro-me ao grupo de usuário do transporte público e do terminal.   

É fácil notar que ali, às 18h, estão voltando para casa muitos trabalhadores, homens e mulheres que passam o dia em Campinas, trabalhando em diversos ramos de atividade, principalmente nos ramos da construção civil, comércio e doméstico. As conversas nas filas denunciam essas atividades.

Campinas é uma cidade que cresceu muito nos últimos anos, possui distrito industrial e um custo de vida extremamente elevado. Isso criou uma demanda social alta por diversos serviços públicos como o de saúde, o de segurança, educação e principalmente o de habitação.

Como ocorre praticamente em todas as grandes cidades brasileiras, as camadas menos favorecidas são as que mais sofrem com essas questões e são relegadas à periferia da cidade. No caso da Região Metropolitana de Campinas (RMC), muitos trabalhadores moram nas cidades adjacentes.

Curiosamente, é da periferia, tanto de Campinas, quanto das outras cidades da RMC, que vem a grande maioria dos trabalhadores braçais que atendem às famílias abastadas dos bairros nobres da cidade.

Pois bem, estando eu um dia desses esperando o busão e exercitando os ouvidos e os olhos, testemunhei um diálogo que me fez refletir profundamente.

Ouvi um senhor de aproximadamente 40 anos, negro, barba rala, voz grossa, de estatura mediana e bem forte fisicamente, conversar com uma jovem senhora e sua colega, ambas na faixa dos 30 anos, sendo uma branca e a outra morena. A branca era magra e baixa, com cabelos claros e longos até a cintura. A morena era mais alta e mais forte, de cabelo curto e bem preto. Ambas muito sorridentes e falantes.

Esse trio estava em uma fila ao lado da minha e fazia piada com a própria situação de empregados, ora criticando o comportamento dos patrões, ora relatando situações de inferiorização enfrentadas e suportadas por medo de perder o emprego.

Elas, empregadas domésticas, ele jardineiro. Dá longa e animada conversa entre eles (provavelmente se conheciam), o que me marcou mais foi a frase que ele disse quando seu busão estacionou na plataforma: “Até que enfim! Demorou demais, não foi? (falou dirigindo-se às suas colegas). Estou louco pra chegar no meu barraco, amanhã tem jardim da mansão de novo”.

Eles partiram, eu fiquei por cerca de dez minutos esperando meu busão. Nesse tempo, as palavras barraco e mansão martelaram em minha mente. Lembrei do livro Casa-Grande & Senzala do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Suspirei e falei a mim mesmo: “É… 18h, hora de voltar para o barraco, essa “senzala” que insiste em não desaparecer”.

*Sociólogo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia. Doutorando de Ciências Sociais pela Unicamp.

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