Nova conquista da literatura enviesada de Beth Azize

Publicado em: 17/02/2019 ร s 22:58 | Atualizado em: 18/02/2019 ร s 09:41

Wilson Nogueira* (texto e foto)

Enรฃ Nogueira (Ilustraรงรฃo)

Elizabeth Azize โ€“ ou simplesmente Beth Azize, juรญza aposentada e militante polรญtica entre as dรฉcadas de 1970 e 1990 โ€“ รฉ tambรฉm escritora que o tempo se encarregarรก de assentรก-la, por reconhecimento dos leitores, entre os mais habilidosas e as mais habilidosas da arte de escrever.

Mais que a prediรงรฃo de um leitor apaixonado por narrativas enviesadas, trata-se de uma constataรงรฃo, uma vez que E deus chorou sobre o rio, lanรงado em 1985, acaba de conquistar a sua terceira ediรงรฃo, a segunda pela Editora Valer (Manaus-AM). Nรฃo รฉ feito fรกcil no mundo dominado pelo marketing dos best selleres nem paraย quem transgride os cรณdigos do sucesso da hora.

O livro tece a saga dos sรญrios e libaneses na Amazรดnia, a partir de pedaรงos do cotidiano em Manaus e Manacapuru, eivados das lembranรงas das terras e dos costumes e hรกbitos orientais.

Assim, na sua arte, Beth Azize se manifesta como herdeira dos tecelรตes e tecelรฃs dos complexos tapetes รกrabes.

O olhar da autora deixa-se levar pela vida simples, dura e renitente dos imigrantes que chegaram ao Amazonas no final do sรฉculo 19 e comeรงo do sรฉculo 20, fugindo das guerras. Aqui, se misturaram aos demais imigrantes e autรณctones, e participam ativamente da histรณria do Amazonas e do Brasil.

 

Se hรก um personagem central, este seria Marmud, dono de uma casa de secos e molhados, localizada na Escadaria dos Remรฉdios, e do barco Jatahy, com o qual regateava pelos beiradรตes amazรดnicos.

Porรฉm, รฉ fรกcil perceber que Marmud nรฃo รฉ figura dominante. Ele divide relevรขncia com as demais personagens: caboclos, carregadores, teque-teques (camelรดs), embarcadiรงos, juรญzes, amantes, boรชmios etc. Marmud nรฃo รฉ uma espinha dorsal, mesmo que, se por acaso, fosse essa a pretensรฃo da autora.

A presenรงa do patriarca รฉ constantemente quebrada por outros vieses, por conta da inserรงรฃo de novas peรงas do grande tapete que, tecidas, juntas, tรชm a mesma importรขncia no conjunto da obra: a parte estรก no todo e o todo estรก na parte. E desse modo os vinte e dois capรญtulos, distribuรญdos em 216 pรกginas, podem atรฉ ser lidos separadamente, sem que o leitor deixe de se envolver nas tramas episรณdicas.

Chama atenรงรฃo a presenรงa marcante dos rigores da educaรงรฃo domรฉstica รกrabe para as mulheres, mesmo nos trรณpicos. Mas Beth Azize, embora enraizada nessa cultura, as apresenta na perspectiva da libertaรงรฃo da influรชncia machista. Elas sรฃo peraltas e pequenas transgressoras na infรขncia, e se tornam mulheres amorosas e rigorosas nas suas decisรตes.

Por isso, รฉ possรญvel inferir que atรฉ mesmo as cenas mais dramรกticas, como naquela em que um casamento previamente prometido, obrigatรณrio nas circunstรขncias vividas pelos imigrantes, termina em assassinato da noiva รกrabe e suicรญdio do noivo nativo assassino.

A autora capricha nas cenas e cenรกrios das alcovas, nas quais os casais jovens se esbaldam em ย beleza e leveza e ao mesmo tempo humanamente animalescas.

Os corpos em atos de amor danรงam em harmonia com os ingรชnuos desejos ou consciรชncia da necessidade da existรชncia. Nesseย  contexto esgarรงa-se uma estรฉtica do prazer costurada pela cumplicidade feminina.

Os homens imigrantes, por sua vez, se lanรงam nas oportunidades que a nova terra oferece. Trazem nas veias a arte de comerciar, desde a pequena jornada de um teque-teque, que retorna no final do dia para casa, ร s viagens de longos dias, como as que faz Marmud na sua lancha Jatahy pelos rios amazรดnicos, atado ร  sua vida de regatรฃo.

Beth Azize nรฃo pรตe panos mornos no jeito de Marmud levar a vida de porto em porto. No rastro dos costumes da sua descendรชncia, ele รฉ um senhor de mil amores, mil negรณcios e, acima de tudo, um sobrevivente em um mundo onde a รฉtica entre autoridades e subalternos valia pouco ou quase nada.

Outro aspecto importante do livro, รฉ a revelaรงรฃo do imaginรกrio regional na vida dos sรญrios e libaneses, pela qual se estabelece um diรกlogo cultural entre povos tรฃo distantes e ao mesmo tempo tรฃo prรณximos em razรฃo do fator humano. Santos, visagens, crenรงas, lendas e festas populares permeiam vรกrios episรณdios. Estabelece-se, por isso, uma atmosfera familiar das culturas que se forjam pelos movimentos incessantes dos seres humanos no planeta, sejam nos desertos, nos mares, nas florestas ou nos rios.

O desfecho dessa narrativa nรฃo poderia ser o mais simbรณlico da condiรงรฃo da qual a terra รฉ รบnica no acolhimento das diferentes formas de vida, inclusive as dos seres humanos. Marmud, certa noite, acorda atormentado pelo sonho no qual a mรฃe-d’รกgua o convida para morar com ela, no fundo do rio.

Este รฉ o meu reino

Aqui รฉ o meu lugar

Trago de conviva

A quem eu quero amar.

Logo em seguida, a Jatahy enfrenta um temporal e, na escuridรฃo, se choca com um tronco de รกrvore, afundando imediatamente. Todos largam a embarcaรงรฃo em busca de salvamento, menos Marmud, que decide permanecer a bordo e, assim, ir morar no fundo do rio. Nesse ano de 1947 a enchente no Solimรตes foi muito alรฉm dos marcos anteriores, porque Deus chorou sobre o rio, segundo confere Gabriel, o filho que dรก continuidade ร  vida de regatรฃo do pai.

Enfim, nรฃo tenha medo de se perder nessa leitura de mil vieses!

 

*O autor รฉ escritor e jornalista.