Diário de uma quarentena | 30º dia, 19 de abril – Dia do índio invisível

"Em menos de um mês, o coronavírus já matou ticuna, baniwa, yanomami e borari aqui na Amazônia"

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*

Publicado em: 19/04/2020 às 19:34 | Atualizado em: 19/04/2020 às 19:34

Hoje é domingo. São 16h18.

Há um mês, quando comecei a escrever este diário, o Amazonas havia registrado apenas quatro casos do novo  coronavírus (Covid-19) e não tinha nenhum óbito.

Hoje, o Estado conta, confirmados, 2.044 casos de contaminação e soma 182 mortes.

Nas últimas 24 horas, foram 147 novas infecções e 21 perdas.

No começo da manhã, manifestação de apoiadores do presidente pedia a saída do governador do Estado.

O ato era parte de uma movimentação nacional contra os governadores, que, em pesquisas, aparecem com apoio dos brasileiros em relação às medidas de enfrentamento à doença.

Neste fim de semana, os cartórios da capital registraram congestionamento de pessoas em busca de certidões de óbitos.

A Fundação Municipal Doutor Thomas anunciou que oito de 131 idosos que moram ali foram infectados pelo vírus.

Sobre isso, o prefeito falou em crise grave.

 

A tossezinha do presidente

O Brasil contou hoje mais 115 mortes nas últimas 24 horas e já soma, até aqui, 2.462 mortos pelo coronavírus.

O país contabiliza 38.654 pessoas com resultado positivo para o novo coronavírus.

O mais rico estado da Federação também é grande nos números de infecções, 14.267, e de mortos, que já são mais de mil, 1015 óbitos.

A imagem do dia de hoje será a do presidente da República liderando uma manifestação que pedia o fechamento do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e defendia a volta da ditadura militar.

Creio que esse discurso será lembrado para sempre e terá grande valor histórico.

Da mesma forma, terá valor histórico a tosse do presidente ao falar para o povo que se aglomerava para ouvi-lo. O presidente tossiu várias vezes. Ele chamou o coronavírus de gripezinha.

 

Saudade

Hoje, em casa, assamos umas bistecas.

O Segundo e a Ana vieram almoçar aqui.

A Darci passou a manhã mandando mensagens para as amigas.

Ao sentar à mesa, ela disse que queria vê-las e eu respondi: “nem pensar”. E ela falou:

“Já estou com saudade de reunir gente”.

Compreendo, mas acho que temos primeiro que superar o vírus e resistir a ele, fazendo o que o mundo está fazendo para se proteger da doença: ficar em casa.

 

Dia do índio invisível

Otávio dos Santos era brasileiro. Ele tinha 67 anos de idade e era um sateré mawé.

Morreu na quinta-feira, dia 16, infectado pelo novo coronavírus.

O vírus entrou na aldeia sem que ele sequer tenha saído dali.

Otávio era tuxaua, principal autoridade da comunidade São Benedito, em Maués (AM).

Apesar da importância que tinha para o seu povo e para o País, o líder entrou na contagem do governo central como um desconhecido, um brasileiro invisível.

Sim, porque foi assim que o Ministério da Saúde registrou a morte, sem ao menos informar o seu nome, apesar de ter tido contato com ele, conforme diz uma nota oficial divulgada na sexta-feira.

Mas o tuxaua desconhecido é apenas uma mostra, nessa pandemia, do que acontecerá com esses povos que há séculos resistiram a invasões de doenças e de gente e à ambição capital.

Em menos de um mês, o coronavírus já matou ticuna, baniwa, yanomami e borari aqui na Amazônia.

O dia 19 de abril, de novo, é o dia do índio invisível.

 

*autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas

Arte: Alex Fideles