O relógio marcava 11:34h quando entramos em contato pelo aplicativo WhatsApp com o coveiro Ulisses de Souza Xavier, de 52 anos. Há 16, ele exerce a profissão que tem sido uma das mais exigidas atualmente com a pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Só em Manaus, é um trabalho realizado por 190 desses profissionais do SOS Funeral, no cemitério público Parque Tarumã, zona Oeste de Manaus.
Conversamos por quase 10 minutos. Uma entrevista das mais longas e com extrema firmeza na voz de Ulisses, apesar do trabalho em um lugar marcado pela dor.
Os relatos de um homem casado, pai de um casal de filhos, e avô de cinco netos, vai além do ofício hoje em dia, é antes de tudo de um ser humano, com qualquer um.
Antes de fato atuar como coveiro, como ele mesmo disse, trabalhou “por vários tipos de mão de obra”. Por exemplo, “servente, pedreiro, lanterneiro, mecânico, instalador de rede telefônica, trabalhei na Manaus Energia, vendi açaí na cabeça, vendia picolé, passei por várias coisas na minha vida”. Tudo isso, antes de enfrentar das 7h às 18h, enterros todos os dias, e mais aberturas de covas para receber as vítimas da Covid-19.
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Na linha de frente
O esposo de Omaira Costa Xavier 53 anos, pai de Jeyson Costa Xavier 35 e Marlisse Costa Xavier 36, tem atuado em uma das frentes da pandemia da Covid-19 na capital amazonense. O trabalhou para ele não parou, desde março de 2020, quando o vírus começou a ceifar a vida de mais de 7.232 pessoas no Amazonas até este dia 26 de janeiro de 2021, conforme os dados divulgados pela Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM).
Até o momento, janeiro conseguiu bater recordes na pandemia em Manaus. Somados até o dia 21, foram 1.333 óbitos, superando toda série histórica de 2020. De março a dezembro do ano passado 1.285 pessoas morreram da Covid-19, na capital amazonense.
Mesmo diante deste cenário, Ulisses relata a primeira e a segunda onda da pandemia em Manaus como “o pior momento”! Para o coveiro, o fato de nunca ter “passado por isso”, deixa-o preocupado por diariamente lidar com a perda de tantas famílias.
Além disso, ele explica que o cenário do mês de abril de 2020, quando houve o enterro em valas comuns no cemitério, e o de janeiro tem sido igual. Entretanto, trata-se de uma realidade diferente da visão empírica de Ulisses. No último dia 16 de janeiro, foram registrados 213 sepultamentos, superando a marca de 167 em 26 de abril do ano passado.
“Ninguém quer ver a perda de nenhum ser humano. E o sofrimento tanto faz da primeira pra segunda (onda) é o mesmo sofrimento que as famílias passam. E o serviço é o mesmo, é trabalhoso, mas a gente tem que fazer, a nossa obrigação é essa aqui”, disse.
Todo cuidado a cada dia
Sem pensar em deixar o trabalho mesmo com o cenário nefasto da morte a cada enterro, ‘seu Ulisses’ diz que hoje parte da família, a esposa e os outros quatro netos estão isolados, em um sítio na comunidade São Sebastião, Tarumã Mirim, zona rural de Manaus. A medida foi tomada para evitar o risco de contaminação.
“A minha família pede para ter cuidado, tanto é que minha mulher com meus netos, estão num ‘terrenozinho’ que eu tenho aí, num sítio. Elas não estão aqui em Manaus. Todo cuidado eu tenho, tanto de sair do trabalho e quando chegar em casa”, explicou.
Hoje, apenas Ulisses, a filha mais velha e uma neta estão na zona urbana da capital amazonense. Na casa de “dois pisos”, o contato físico é evitado. De acordo com o chefe da família, ele tem ficado na parte superior do imóvel e a filha e a neta no andar inferior. Sem poder se comunicar pessoalmente, o aplicativo WhatsApp tem sido a ponte virtual para matar a saudade de toda a família.
“Só pelo telefone eu falo com elas. Minha janta tá pronta, minha roupa tá lavada. Meu contato é assim com eles. A gente tem bem pouco contato”, relatou.
“Quando chego em casa, eu ligo pra dizer que tô bem, pra saber como é que eles estão. Se está faltando alguma coisa, se estiver faltando alguma coisa, eu envio pra eles. É assim, pra matar a saudade”.
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Enterros
Nas contas de Ulisses, a média de enterros no cemitério Tarumã no pico da pandemia, “era entre 60. É porque tem várias situações aqui, porque tem abertura e enterro normal. Daí eu não sei se no final da tarde o total de tudo. Eu sei quanto no dia que eu tô trabalhando”.
Conforme o coveiro, “tem dia que dá 20, 24 na quadra, tem dia que dá 30, é assim. Agora quando acaba o dia, eu não fico sabendo do fechamento de tudo”.
O descanso vem depois
Mesmo com dia de folga disponível na semana, Ulisses de Souza e outros colegas têm atuado de forma incansável para ajudar na demanda dos enterros diários. Para ele, o descanso merecido vem somente “quando passar tudo isso”.
“Estamos ajudando, quanto a prefeitura, como o cemitério todo. Como todos os funcionários em função dessa pandemia, estamos dedicados a trabalhar pra acabar com isso aí”, declarou Ulisses.
“Sentimento de tristeza”
Apesar da pergunta parecer inconveniente para um coveiro, profissional que tem o ofício enterrar corpos, foi necessário para compreender parte do que se passa na cabeça deles na hora de fazer tudo isso. Perguntamos a Ulisses: “O que vem a sua cabeça na hora que está enterrando uma pessoa dentro do caixão?”
A resposta parece óbvia, mas não é, pois diante de toda situação extrema, e mesmo para o coveiro Ulisses, trata-se de “um sentimento de tristeza”. Ele conta que perdeu um irmão, “não por essa doença maldita, mas por outra situação”. “Então já passei por essa perda de um ente querido, então a gente já imagina, sabe o sofrimento”, completou.
Não demonstrar o abatimento e a tristeza por ver todo a cena de desolação tem sido uma tarefa cumprida por Ulisses, apesar de difícil segundo ele relata.
“A família já está abatida com a perda de um ente querido, e a gente ainda demonstrar que não tá bem, não fica legal não”, disse.
União faz a força
Ulisses de Souza diz que ninguém está desamparado, todos os trabalhadores seguem unidos na labuta e com o suporte de EPIs para exercer o dever diário.
Vacinação
Abordado sobre o tema vacinação contra a Covid-19, o coveiro ficou surpreso ao saber da possibilidade de sua categoria entrar no grupo prioritário para receber a primeira dose do imunizante em Manaus. A princípio, o prefeito David Almeida, por meio da Procuradoria Geral do Município, ingressou no último dia 22 de janeiro na Justiça Federal, com um pedido para incluir os coveiros na lista do primeiros vacinados do Plano Nacional de Imunização (PNI), do Ministério da Saúde. Até o momento, o documento inclui somente idosos a partir de 75 anos e profissionais de saúde que estão na linha de frente da pandemia.
“Se ele fizer isso é claro que a gente vai agradecer muito. Mas no momento eu não tenho nem tempo de ver jornal. Eu chego em casa, tomo um banho, descanso e vou dormir. Por enquanto não tô sabendo nada de vacinação”, declarou.
Foto: Divulgação/ Semcom