Aldenor Ferreira*
Na Lei nº. 601, promulgada em 18 de setembro de 1850, está a gênese da desigualdade social no Brasil. A famigerada lei de terras criou uma estrutura fundiária perversa, cujos desdobramentos se fazem sentir ainda hoje.
Antes dela, todas as terras que estavam dentro dos limites do território nacional pertenciam à Coroa, que apenas dava concessões de uso que poderiam ser passadas como herança. Nesse cenário, era vedada apenas a venda ou a compra de outras concessões.
Mas, com o declínio do ouro das Minas Gerais no final da primeira metade do século XVIII e com a ascensão do café a partir de 1820 na região do Vale do Paraíba fluminense e paulista, era preciso estruturar e ampliar o modelo agroexportador.
Conforme registrado por João Pedro Stedile no texto A questão agrária no Brasil: o debate tradicional – 1500-1960, era preciso estimular os concessionários de terras a investirem seus capitais na produção de mercadorias voltadas para a exportação.
Visando a atender esse objetivo, a Coroa garantiu a posse de imensas extensões de terras, com critérios nem sempre muito claros relacionados aos limites dessas concessões.
Conforme Stedile, “ocritério fundamental para a seleção dos eleitos pela ‘concessão de uso’ das terras era – muito além do que simples favores a fidalgos próximos – a disponibilidade de capital e o compromisso de produzir na colônia mercadorias a serem exportadas para o mercado europeu”.
Outro detalhe muito importante, assinalado por Stedile, era pressão internacional que a Coroa sofria para a abolição da escravidão. Segundo ele, a lei de terras foi uma precaução, uma ação antecipada para garantir as melhores condições de negócios ante à inevitável abolição.
O objetivo da lei era evitar que trabalhadores escravizados, ao serem libertos, se tornassem proprietários de terras, mantendo-os, dessa forma, vulneráveis – fato que os levaria a permanecer à mercê dos fazendeiros, mas, dessa vez, como assalariados.
Como registra Stedile, essa lei “foi um marco jurídico para a adequação do sistema econômico e de preparação para a crise do trabalho escravo, que já se ampliava”. Para ele, essa lei foi o “batistério do latifúndio no Brasil”.
Parafraseando-o, eu a defino como a gênese da desigualdade social no país, visto que, conforme o próprio autor aponta, “ela regulamentou e consolidou o modelo da grande propriedade rural, que é a base legal, até os dias atuais, para a estrutura injusta da propriedade de terras no Brasil”.
Até 1850 não havia de fato propriedade privada da terra no país. Com a lei, então, saem de cena as concessões de uso, tendo início a comercialização de terras, passando a serem precificadas e tidas como objeto de negócios. Essa é uma relação tipicamente capitalista que cria de imediato exclusão social e, futuramente, mais desigualdade e miséria.
Esse novo ordenamento jurídico impediu que os trabalhadores escravizados, libertos a partir de 1888, se transformassem em pequenos proprietários, sitiantes, colocando-os em uma situação igual ou pior do que a vida na senzala.
Elaborada, defendida e aprovada por partidos das elites agrárias no Congresso Monárquico, a lei dizia que todos poderiam ser proprietários de terra no Brasil, desde que pudessem pagar à Coroa.
Todavia, quem poderia fazer isso? No caso dos trabalhadores negros, que viveram sempre em uma senzala, que não sabiam, em sua maioria, fazer outra coisa a não ser lidar com a terra, sem capital, sem relações políticas, sem apadrinhamento, sem influência, como eles poderiam comprar um lote terra?
O resultado não poderia ser outro. Os trabalhadores libertos, não possuindo nenhum bem e sem recursos para adquirir um pequeno lote, continuaram à mercê dos fazendeiros.
Para piorar, novamente conforme Stedile, pela mesma lei de terras, os trabalhadores “foram impedidos de se apossar de terrenos e, assim, de construir suas moradias: os melhores terrenos nas cidades já eram propriedade privada dos capitalistas, dos comerciantes etc.”
Portanto, é nessa lei que podemos ver a origem da desigualdade social no Brasil, da vida precária, despossuída, miserável e ensanguentada da maioria do povo. Ela é a principal responsável, por exemplo, pelo surgimento das favelas.
Stedile afirma ainda que com os trabalhadores libertos, impedidos de comprar terras e mesmo de se apossar de algumas, eles foram em “busca do resto, dos piores terrenos, nas regiões íngremes, nos morros, ou nos manguezais, que não interessavam ao capitalista”.
Mas tudo isso não está no passado. Nos tempos hodiernos, não satisfeita, a elite agrária brasileira, em sua maioria herdeira do regime escravocrata, quer a promulgação de uma nova lei de terras tão atroz quando a de 1850: o marco temporal. No limite, essa tese defende a continuidade do monopólio do acesso à terra.
Eles/Elas querem fazer com os indígenas o que fizeram com os negros, ou seja, querem eliminar de vez qualquer possibilidade desses povos terem uma terra para plantar, colher, de possuírem um território para se reproduzirem material e simbolicamente.
Assim, por meio de seus “comitês executivos” (Câmara e Senado), a elite agrária articula o contínuo extermínio dos povos tradicionais. Com o monopólio da terra – principal meio de produção de riqueza – mantém-se a desigualdade social e é promovida a miséria no país em um processo ad infinitum .
Como em 1850, a maldade dessa gente permanece igual. Por outro lado, assim como houve lutas e resistências à lei de terras naquela oportunidade, no tempo presente, haverá lutas e resistências contra o marco temporal e todos os seus desdobramentos.
A redução da desigualdade social no Brasil perpassa pela democratização do acesso à terra, pela manutenção do direito dos povos tradicionais aos seus territórios ancestrais, pela reforma agrária, pela preservação do meio ambiente e por outras medidas.
Por isso, juntamente, nós e os povos tradicionais precisamos lutar por essas pautas.
Sociólogo
Foto: Pablo Vergara/MST-RJ