Gaston Bachelard, no livro A formação do espírito científico , adverte que é preciso tomar cuidado com o senso comum erudito. Segundo ele, esse seria um tipo de conhecimento que é refém da academia e que transita somente nela.
No processo de desenvolvimento desse espírito, o senso comum erudito, afirma o filósofo francês, também é um obstáculo epistemológico. Noutra passagem desse mesmo livro, Bachelard afirma que “a cidadela erudita contemporânea é tão homogênea e protegida que os textos de pessoas alienadas ou esquisitas dificilmente conseguem um editor”.
A crítica feita por Bachelard não é exclusiva à universidade, abrangendo também à ciência. Ainda assim, pego esse gancho para refletir sobre o quanto a universidade brasileira está distante do mundo real, do quanto ela permanece enclausurada e longe da sociedade.
Como sabemos, nos últimos anos, as universidades brasileiras têm sido acidamente criticadas por alguns setores da sociedade. Há inúmeros discursos que as reduzem e questionam, por exemplo, sua relevância para o desenvolvimento do país.
A fase é tão ruim que até mesmo o ministro da educação, em um programa da TV Brasil, afirmou que a “universidade deveria ser para poucos” e que “ela deveria ser útil à sociedade”. Infelizmente, a fala do ministro não traduz apenas o seu pensamento, mas ela é reflexo do pensamento de parte significativa da sociedade que ele representa.
Não concordo com ele, pois penso que a universidade não tem que ser para poucos, pelo contrário, ela tem que ser para muitos, no limite, para todos. Mas, então, o que haveria de errado nessa instituição? No meu entendimento, trata-se da forma de se comunicar com a sociedade, que acaba gerando distanciamento.
Poderíamos pensar, nesse sentido, que as universidades brasileiras se assemelham a castelos medievais: são quase impenetráveis e de difícil acesso para o conjunto da sociedade. São microcosmos, para utilizar uma expressão de Foucault, segmentos que não dialogam como deveriam dialogar com a comunidade em que estão inseridos.
Por ser quase impenetrável e, até pouco tempo, praticamente não questionada e criticada, a universidade permaneceu como uma espécie de “cidadela erudita”, sendo a morada dos deuses, um espaço de egos inflados e concorrentes que se retroalimentam e, também, se autoenganam.
Ocorre que cada tempo histórico é marcado por singularidades e especificidades que lhes são próprias, sendo o nosso marcado pelo acesso a “tudo” ou pelo menos a boa parte do que existe.
Com o advento da globalização e a “revolução técnico-científica-informacional”, para utilizar aqui uma frase de Milton Santos, o conhecimento científico não apenas se ampliou, como também se tornou mais disponível.
O conhecimento, ou a possibilidade de obtê-lo, não é mais monopólio de uma determinada instituição, não está mais circunscrito a um espaço físico ou a uma geografia. À guisa de exemplo, da cidade de Naviraí, no interior do estado de Mato Grosso do Sul, eu posso acessar a biblioteca do Congresso Americano, ou posso baixar artigos e e-books da universidade de Cambridge.
Portanto, e isso é condição sine qua non , as universidades brasileiras terão que se reinventar, terão que, de fato, entrar no século XXI, modernizando-se e, acima de tudo, aproximando-se das comunidades em que estão inseridas.
Por muito tempo elas estiveram de costas para a sociedade. Aliás, a própria construção dos campi se dava quase sempre fora dos centros, mas, depois, com o crescimento urbano, a cidade os alcançava. Ou seja, simbolicamente, a comunidade local estava sempre sendo afastada da universidade.
Ocorre que, nestes tempos, as universidades não sobreviverão se permanecerem nessa posição, ou seja, apartadas da sociedade em que estão inseridas. Nesse sentido, tudo precisa mudar, até mesmo a forma de fazer e de comunicar os resultados de uma pesquisa cientifica.
A própria linguagem da ciência, a sua escrita, a sua forma e o seu conteúdo precisam mudar. Textos com parágrafos longos, livros calhamaços, com linguagem inacessível, estão fadados ao fracasso; como diriam Marx e Engels, serão deixados “à crítica roedora dos ratos”. É o nosso tempo.
Certamente, não estou propondo o fim do rigor científico ou a troca da profundidade e da complexidade por algo banal, coloquial, superficial, mas, sim, apontando para a necessidade de criação de melhores instrumentos de comunicação científica e institucional, que propiciem diálogo com a comunidade externa.
Nesse quesito, de maneira geral, as universidades estão muito atrasadas. Com raras exceções, os sites oficiais são péssimos, mal diagramados, visualmente poluídos, inoperantes e, pior, não possuem linguagem que alcance o público externo, curiosamente o público mais importante a ser alcançado – e esse é só um exemplo.
A presença em redes sociais e plataformas de vídeos, por sua vez, ainda é tímida e pouco impactante. A comunicação visual, péssima! Em muitos casos, é mais fácil que a(o) cidadã(o) encontre uma determinada informação fazendo uma busca diretamente no Google do que no próprio site da universidade.
Concluo afirmando que, apesar de as universidades brasileiras produzirem muita coisa boa, comunicam isso mal, o que acaba por deixá-las distantes da sociedade, passando uma imagem de ineficiência e de inoperância, dando a entender que não servem para nada.
Nesse sentido, a “cidadela erudita”, se quiser permanecer de pé e sobrevier aos ataques de hordas obscurantistas e negacionistas do tempo presente, terá que mudar, terá que se aproximar de fato da sociedade e comunicar-se melhor com ela.
Foto: Reprodução/Agência Brasil
*Sociólogo