O processo de ocupação da Amazônia é uma sucessão de conquistas e perdas de territórios, gentes, viventes, riquezas e ideias.
Apenas a história recente do território da reserva de desenvolvimento sustentável Uatumã (RDS Uatumã) é capaz de contar sucessivas batalhas travadas contra ameaças coloniais, desenvolvimentistas, capitalistas e ambientais.
Quando ouvimos o território aprendemos que os povos indígenas que ali viveram em tempos pré-coloniais plantaram os açaizais e tucumãzais; que os curupiras deixaram marcas nas sapopemas; que o perfume da Marilyn Monroe desapareceu com as árvores de pau rosa; que a hidrelétrica de Balbina alagou o território das onças; que a RDS transformou vidas; que o aquecimento global está secando os frutos que os indígenas deixaram.
Essas batalhas deixaram marcas e rastros das transformações que aconteceram em cada episódio.
As pessoas, o rio, os meriuns, as araras no amanhecer, os cajueiros, os poetas agricultores, os botos, todos nos contam essa história a partir da comunidade de São Francisco das Chagas do Caribí.
O nome da comunidade já revela dois momentos históricos e culturais da Amazônia do rio Uatumã.
Os temíveis Caribí
Karib (caribe) é um tronco linguístico do qual derivam idiomas falados por várias etnias. Tal como é o latim para idiomas como português, espanhol, italiano, francês.
Mas, além do idioma, um tronco linguístico também transmite um conjunto de características. Os povos karib eram fluentes no idioma da guerra e isso os fez temidos pelos povos com quem disputavam territórios antes mesmo da chegada dos colonizadores.
Quando os europeus chegaram à Abya Yala (que hoje conhecemos como continente americano), povos karib viviam nas pequenas ilhas ao norte da América do Sul. Por isso, o mar de águas calmas e translúcidas foi registrado pelos colonizadores como o mar dos caribe.
Entre o mar dos caribe e o Paranaguaçu (grande irmão do mar), o rio Amazonas, viviam os karib do rio Uatumã, o povo Kinja, autodenominação do povo Waimiri Atroari.
Porém, as batalhas do final do século XIX entre os Kinja e os invasores não-indígenas os empurraram do Uatumã, levando-os mais para o interior. Hoje eles vivem nos rios Jauaperi e Camanaú e seus afluentes, os rios Alalaú, Curiaú, Pardo e Santo Antônio do Abonari.
A presença desses temíveis Karib deixou rastros na memória dos que hoje vivem no rio Uatumã. A comunidade São Francisco das Chagas do Caribí carrega o simbolismo de um santo católico junto ao termo que significa “valente, aguerrido”.
A junção fala sobre a história de um povo que perdeu a possibilidade de viver naquele rio para uma ideia cristã, mas não sem lutar.
Leia mais
Com quantos paus se faz um perfume
Outro vivente do rio Uatumã foi quase completamente expulso de seu território: a árvore de pau rosa (Aniba rosaeodora).
Na década de 1960, o óleo essencial retirado do tronco do pau rosa estava em plena valorização pela popularização do perfume Chanel nº 5.
O perfume francês era propagado como o segredo de sedução da atriz estadunidense Marilyn Monroe.
Segundo o Instituto Soka, cerca de 500 toneladas de óleo essencial de pau-rosa foram exportadas anualmente pelo estado do Amazonas, naquela década.
Para se ter uma ideia, para extrair 1 litro de óleo é necessário processar de 80 a 150 quilos de madeira, a depender da eficiência do método de destilação.
Foi tão ferozmente extraído que hoje em dia é raríssimo encontrar uma árvore de pau rosa na região do Uatumã.
Em 1992, a árvore entrou para a lista de espécies ameaçadas de extinção do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Leia mais
Há algo de podre
Está na memória dos moradores o momento em que as comportas da hidrelétrica de Balbina abriram pela primeira vez. A enxurrada arrebentou tudo que havia nas margens do rio Uatumã.
Os animais mortos, a flora e os detritos das comunidades alagadas na cabeceira apodreceram na represa. A água podre seguiu pelo curso do rio, adoecendo as comunidades.
Os moradores lembram que os macacos, que bebiam a água pútrida, perderam a pelagem. Viam centenas de peixes mortos boiando sobre o rio. Os quelônios perderam a referência de praias importantes para a sua reprodução.
A construção da hidrelétrica de Balbina ocorreu de 1985 a 1989. Em 1992, foi dado início ao processo que culminou na criação da RDS Uatumã.
Um território protegido
Seu Orimar Sicsú, morador da comunidade do Livramento, participou do que ele chamou de “fase do convencimento”, pois nem todos os moradores entendiam o que era uma reserva de desenvolvimento sustentável.
No fim dos quase vinte anos de processo, nem todos concordavam. Mas venceu a maioria e a RDS Uatumã foi criada em 2004.
Ainda assim, até hoje existem conflitos com madeireiras que reclamam áreas que seriam de sua propriedade. E, de vez enquanto, argumentando tal posse, assediam a área da RDS.
Contam os moradores que um certo representante de madeireira, conhecido na região, levou uma surra no centro da mata de algo que não conseguiu identificar. Pela narrativa, os comunitários entenderam que tinha sido o Bicho Folharal. Assombrado, o homem não teria mais voltado até aquele trecho.
Outro encantado que fecha os caminhos dos madeireiros é o curupira. Por ser travesso, ele chuta os troncos das árvores para se divertir. Mas, é muito forte e, às vezes, deixa marcas. Como as que deixou na sapopema que vive no terreno do seu Josué Mendes, morador de São Franscisco das Chagas do Caribí.
Josué conta que desde pequeno ouve o “tummmm” do chute do curupira, sempre à noite. E fica feliz de saber que ele ainda anda por lá.
Recentemente, também tem lhe dado alegria os peixes-boi soltos na RDS. Os animais ameaçados de extinção têm sido levados até as águas na cabeceira do Uatumã para se readaptarem a vida em seu meio natural.
Quando estão prontos, os peixes-boi são soltos. Como recebem localizadores, os moradores os identificam e os conhecem pelo nome. A soltura desses aninais, assim como as dos quelônios são, literalmente, uma festa.
Um plano infalível
As RDS possuem um plano de uso do território. Nesse plano, um dos objetivos é manter as comunidades fortalecidas cultural e politicamente para que consigam usufruir da vida no território sem degradá-lo.
E são gerenciadas pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) e contam com parceiros que somam com projetos de pesquisa, extensão, educação e economia para manter as comunidades abastecidas de conhecimento e condições de desenvolverem uma economia sustentável.
NA RDS Uatumã, os parceiros são Fundação Amazônia Sustentável (FAS), Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam).
Mesmo que haja desafios, durante os vinte anos de existência da reserva, a região do Uatumã vem se recuperando dos impactos causados por séculos de exploração descontrolada.
Quando, finalmente, se consolida como um território de paz, os moradores da RDS Uatumã (sapopemas, curupiras, peixes-boi, humanos, açaizais, tucumãzais etc.) têm que enfrentar consequências de mudanças climáticas cujos limites legais de suas fronteiras não conseguem barrar.
Ainda assim, a manutenção dos territórios protegidos (por encantados, poetas, agricultores, secretarias e ongs) da Amazônia têm sido a esperança da manutenção dessa força no mundo.
Fotos: Dassuem Nogueira/especial para o BNC Amazonas e FAS/divulgação