Anderson Lucas da Costa Pereira, 44 anos, um homem negro natural de Belém (PA), mora em Santarém desde 2010, onde estudou na primeira turma de antropologia na então recém-criada Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Em seguida, fez mestrado e doutorado em um dos mais antigos colégios de pós-graduação em antropologia social do país, o Museu Nacional, pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Desde 2011, Anderson pesquisa o universo dos povos tradicionais de terreiro de Santarém, em especial, as suas celebrações.
Sua pesquisa extrapolou o campo acadêmico, tornando-se referência para as maiores festas populares do Brasil: o carnaval carioca e o festival folclórico de Parintins.
Em 2019, sua pesquisa se materializou na lenda amazônica “As princesas turcas encantadas na Amazônia”, e das toadas “Aruanda: as três princesas” e “Waiá-toré”.
Em 2025, seu trabalho vai da arena do bumbódromo do interior do Amazonas para a Sapucaí do Rio de Janeiro, com samba enredo da escola de samba Acadêmicos da Grande Rio , “A mina é cocoriô”.
Anderson possui os olhos afeitos à beleza próprios dos artistas e vê potência em cenas e objetos que a maioria não vê. Sua pesquisa é recheada de ilustrações que mostram a riqueza, a beleza e o significado do universo da encantaria.
A partir de hoje, dia 2, até o dia 13 de dezembro, o centro cultural João Fona, em Santarém, exibe a exposição “Se encantou”, com obras que falam das conexões entre os saberes tradicionais, caboclos e afro-religiosos da Amazônia.
O BNC Amazonas conversou com Anderson para saber mais sobre seu trabalho e a sua repercussão.
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A entrevista
Quem são as três princesas turcas?
Na concepção do Tambor de Mina, Mariana, Jarina e Erondina, são três princesas turcas que não passaram pela experiência da morte. Seriam três irmãs que saíram da Turquia no período das guerras das cruzadas. Com medo de perdê-las, seu pai as colocou em um navio e mandou-as em direção à Mauritânia. Só que um portal se abriu no estreito de Gibraltar, elas acessaram o portal da encantaria e desaguaram em águas amazônicas, supostamente, nas praias dos lençóis, um local encantado. Foram recebidas por Tapuia, uma indígena que, nos mitos, se transforma em uma grande pororoca. Nesse local, houve o encontro entre essa Turquia encantada e a sabedoria indígena, cabocla. E começou o processo de ajuremação delas. E aí começa a grande viagem de formação da religião que se chama Tambor de Mina.
O que tanto encanta na história das três princesas?
O que nos encanta nelas é, justamente, esse processo de se encantar, no qual elas vão ganhando um “poder mágico”, vamos dizer assim. Isso fascina muitos adeptos das religiões afroamazônicas que tem devoção a essas entidades como seres com muito poder de cura, de sabedoria e de conselho. Elas se apresentam em diferentes formas no encantamento, podem vir em forma de animais ou incorporando em pessoas que tem mediunidade. E em diferentes linhas de encantaria, nas linhas de caboclo, orixás e encantados.
O que é a encantaria?
São as linhas, são os diferentes mundos. Tem o mundo das águas, das terras, dos ares, das matas e outros. Nesses lugares, os encantados também se encontram e se entrelaçam, eles conseguem criar uma linguagem onde todos se entendem, mesmo com diferenças gigantes. Um leigo observa isso e pode pensar que é muito misturado, bagunçado. Mas na verdade ali há um grande encontro de potências, de muitas energias e isso torna a pessoa médium, que tem esse conhecimento, ainda mais poderosa, pois compreende o que é de fato a diversidade.
E o que é o encantado e o encante?
Encantado é qualquer ser que passa pela experiência de se tornar um ser do encante. É aquele que acessa o portal da encantaria sem passar pela experiência da morte. No mundo da encantaria, inclusive em grande parte das religiões afro-brasileiras, a morte é tratada como uma passagem, não com uma perda. É difícil para a gente compreender isso enquanto seres racionais, muitas vezes, céticos. A materialidade é muito presente em nossa jornada. A gente sempre quer muito conquistar algo material, estamos sempre em uma busca constante de algo para nos preencher. No encantamento, isso não existe porque há continuidade, nesse outro lugar se pratica a esperança de tempos bons. Quando eu falo em outro lugar, não é no sentido de criar algo para fugir da realidade, não. As pessoas que acreditam, que são adeptas do encantamento, os povos tradicionais de terreiro, se espelham nesse lugar, nesse outro mundo onde vive a encantaria. Então buscamos a prática do respeito, do amor ao próximo e da justiça social para a nossa realidade. Se encantar é se tornar esse ser que não passou pela experiência da morte. Ao mesmo tempo, é viver nesse espaço, nesse outro lugar do belo e da justiça, que não é essa nossa justiça.
O que é a Jurema e a ajuremação, muito ressaltados nas abordagens das agremiações que falam sobre as três princesas?
Bom, Jurema é uma árvore muito conhecida nos rituais de iniciação de diferentes religiões afro-brasileiras. E também é um termo indígena que dá nome a uma entidade muito importante na cosmologia afroreligiosa, na Amazônia e no nordeste. A Jurema tem diferentes identidades e formas de aparição. O ajuremar, no contexto amazônico, é uma ação, o processo de adquirir novos saberes. No meu trabalho, eu tento dar uma explicação mais antropológica, e falo que a ajuremação é como uma somatória de muitos aprendizados. Por exemplo, no caso das princesas turcas, elas vão aprendendo os saberes e os segredos da floresta no primeiro contato com a indígena Tapuia. Cada uma delas vai aprendendo uma habilidade específica entre as sabedorias ancestrais amazônicas. Porém, elas nunca deixaram de ser princesas, mesmo permutando em outros seres, outras materialidades. Então o ajuremar é uma somatória dessas forças, na qual não há uma que prevaleça sobre as outras. Isso é muito rico, muito bonito. Nas religiões afrobrasileiras praticadas na Amazônia e nas próprias comunidades ribeirinhas, o aprendizado é uma somatória que nunca anula a sabedoria ancestral. Isso enriquece ainda mais esses saberes.
Como o antropólogo Anderson se ajuremou em artista?
Meio que o encantamento me colocou nessa prova. Primeiro, no processo de assumir a minha identidade enquanto uma pessoa negra do norte do país, entendendo a importância de assumir esse papel politicamente. Depois, de me assumir uma pessoa gay, mesmo que tardiamente, devido às várias violências da sociedade. E, por fim, de assumir que eu sou um grande pesquisador de fato da nossa cultura. Os nossos corpos, por muito tempo, foram vistos (ainda são, infelizmente) como bons para serem analisados, para serem estudados. Mas nossas informações sempre são consideradas como não científicas o suficiente para serem lidas como acadêmicas ou como teoria. E a gente tem visto aí agora uma frente de pesquisadores muito importante, que entrou nas universidades como resultado das políticas públicas de acesso, como as ações afirmativas. Isso tem levado pessoas como eu para a universidade, que carregam uma sabedoria de vivências ancestrais que a gente aprendeu com nossos avós aqui na Amazônia, enquanto comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas, enfim. Mas nos ensinaram a ter vergonha desses saberes. Nas artes, infelizmente, também é a mesma coisa. Tem muitos talentos na região, mas a gente sempre fica com medo de se mostrar porque existe uma classificação que diz o que é arte e o que não é. Isso acaba nos limitando, tirando da gente a potência de mostrar quem realmente somos. Quando eu comecei a criar consciência política e acadêmica da pessoa que eu sou, eu comecei também a me expressar através daquilo que eu sempre gostei de fazer, que é desenhar e pintar. Eu levei muito tempo para assumir esse papel de ser criativo por medo. Enquanto pesquisador e antropólogo, a gente tenta desconstruir esses julgamentos, mas eles nos perseguem também, e isso acaba nos limitando. Eu acredito que também passei por um processo de encantamento que me libertou. Nesse mundo da encantaria, que eu acredito que existe, não existe ódio, existe a justiça social, que a gente tanto preza, mas não consegue pôr em prática. No mundo dos encantados, essas dores cessam. Então eu pinto a partir dessa noção do encantamento. Eu coloco a minha técnica também como uma forma de encantar os meus saberes e meus entendimentos do que seja bonito.
Como você avalia a repercussão da história das três princesas em destaque em festas como o festival de Parintins e o carnaval?
Eu acredito muito nas potencialidades nossas, aqui da Amazônia. E por muito tempo a gente acreditou que o que é bom vem de fora. Eu cresci escutando falas do tipo “para de ser assim porque tu parece um caboquinho”, “tu mora no sítio, é?”. Isso desqualifica a nossa identidade enquanto ser caboclo e ribeirinho. E nós carregamos histórias como essa das princesas, sabemos da importância delas, mas fomos ensinados a renegá-las para sermos mais aceitos nos espaços que a gente sabe que não estão abertos para nós, como a academia e as artes. Então quando eu vejo a potência do carnaval e dos bois de Parintins, assumindo de fato referências de pesquisas de pessoas aqui da região, reconheço que isso é muito importante para a valorização da nossa cultura e para uma modificação educacional. Está se fortalecendo uma antropologia que fala de nós, amazônidas, partindo de corpos como os nossos, de pessoas negras, indígenas, LGBT, que acessam a universidade e levam suas histórias como potência. Nesse sentido, ocorre o mesmo com a cultura popular, pois quando esse tipo de manifestação é visto como arte e conhecimento, existe uma grandiosidade que tem a ver com a educação. Quando a gente traz à tona esses saberes que são renegados, isso se torna muito importante e vira uma referência. Então eu fico muito feliz quando um trabalho meu ganha o mundo da cultura popular porque eu sei que ali está se formando e sendo transmitido conhecimento para além do mundo acadêmico, que é muito importante, mas acaba retido nessa bolha. Quando ganha o gosto popular, eu digo que essa bolha explode e eu acho que a gente começa a fazer a diferença.
*A autora é antropóloga.
Fotos: Vanessa Barros/divulgação