As adegas e o preconceito social
O sociรณlogo Lรบcio Carril diz que 'as adegas, assim como as raves, surgiram da ausรชncia do Estado nas periferias das grandes cidades, onde nรฃo hรก espaรงo de lazer'.

Ednilson Maciel, por Lรบcio Carril*
Publicado em: 13/06/2025 ร s 12:25 | Atualizado em: 13/06/2025 ร s 17:32
Foi apenas no ano passado que tive conhecimento das chamadas adegas, em Manaus.
Tratam-se de encontros festivos de jovens, com mรบsica alta, danรงa, bebidas alcoรณlicas e sociabilizaรงรฃo entre grupos.
Sรฃo jovens da periferia, sem espaรงos de lazer, cultura e esporte onde moram, que resolveram criar um ambiente de descontraรงรฃo a custos baixos, com mรบsicas tocadas em potentes caixas de som, venda de cervejas a preรงos promocionais e onde tambรฉm podem levar suas batidas em garrafas de pets, preparadas em grupo antes das festas.
Nรฃo tardou para o movimento sofrer discriminaรงรฃo, com grande parte da mรญdia manauara fazendo uma campanha para criminalizar esses encontros, criando estigma como espaรงo de violรชncia, consumo de drogas e poluiรงรฃo sonora.
Nรฃo รฉ a primeira vez que um movimento espontรขneo da juventude sofre preconceito embalado por profissionais despreparados, que usam os meios de comunicaรงรฃo para propagarem suas frustraรงรตes pessoais ou mesmo sua hipocrisia velada.
As raves sofreram essa perseguiรงรฃo.
Com luzes fortes, batidas estridentes da mรบsica eletrรดnica, danรงa interativa, as raves eram- e sรฃo – espaรงos de expressรฃo artรญsticas e de sociabilidade entre grupos e tribos urbanas. No entanto, suas festas foram duramente reprimidas, mesmo ocorrendo em galpรตes abandonados e lugares afastados.
O estigma para a repressรฃo era o mesmo: uso de drogas.
Hoje, as raves sรฃo promovidas atรฉ mesmo por empresas de eventos e seguem como espaรงo jovem.
As adegas, assim como as raves, surgiram da ausรชncia do Estado nas periferias das grandes cidades, onde nรฃo hรก espaรงo de lazer, nรฃo existem centros culturais, as polรญticas pรบblicas de promoรงรฃo cultural nรฃo chegam, as escolas permanecem fechadas no fim de semana, com seus ginรกsios esportivos e salas sem acesso para a comunidade. Enfim, nรฃo tem para onde escapar no fim de semana e sair do cotidiano massacrante.
As adegas, assim como as raves, sรฃo espaรงos de transgressรฃo, de liberdade, de fuga do estresse diรกrio imposto pela carรชncia social.
Lรก, os jovens bebem, danรงam, ouvem as mรบsicas da sua geraรงรฃo, interagem com outros jovens e outros grupos de bairros diferentes.
ร o momento de dar um tempo para as regras sociais que lhes consomem e pouco oferecem de bom.
As posiรงรตes que tentam estigmatizar as adegas sรฃo as mesmas que protegem os territรณrios elitizados de Manaus, onde as drogas correm soltas, a violรชncia รฉ praticada com sadismo, mulheres sรฃo estupradas e surradas por homens drogados e sรณrdidos.
Para esses lugares, nenhuma campanha da mรญdia para intervenรงรฃo policial, para fechamento dos bares nos quais se cometem assassinatos e agressรตes. ร muita hipocrisia e pouco profissionalismo.
As adegas apenas reproduzem a vida como ela รฉ na periferia. Lรก, digo, aqui, pois escrevo este texto na minha casa, no bairro da Redenรงรฃo, รกrea favelizada na zona centro-oeste de Manaus, no sรกbado e no domingo, o trabalhador abre o porta-malas do seu calhambeque e pรตe seu potente som para tocar. Um vizinho pรตe a churrasqueira e o outro jรก aparece com a caipirinha. Pronto, a adega estรก montada.
Deixem nossa gente ser feliz. Deixem nossos jovens construรญrem seus espaรงos de descontraรงรฃo. Se o Estado estรก preocupado com as drogas e uma violรชncia esporรกdica, que se ponha a serviรงo dessa juventude, sem preconceito, apenas cumprindo seu papel institucional.
A juventude nรฃo quer cassetete e balas, quer polรญtica pรบblica de inclusรฃo social e respeito.
*O autor รฉ sociรณlogo.
Foto: divulgaรงรฃo