O filme “A Substância”, da cineasta francesa Coralie Fargeat, estreou no Brasil em setembro (2024) e rapidamente se tornou um dos títulos mais comentados do ano.
A trama traz à tona questões profundas sobre a busca pela juventude e a relação obsessiva com a beleza. Mas, para quem ainda não assistiu, um aviso: este texto pode conter spoilers.
No longa, seguimos a história de Elisabeth, interpretada por Demi Moore, uma atriz famosa no passado que, aos 50 anos, vê sua carreira ameaçada.
Apresentadora de um programa de ginástica, Elisabeth é subitamente informada de que será substituída por uma jovem atriz.
Em meio a essa crise de identidade, ela encontra a “substância”, uma droga que promete rejuvenescer seu corpo e torná-la a “melhor versão de si mesma”.
Enquanto assistia ao filme, não pude deixar de lembrar do clássico “A morte lhe cai bem”, dirigido por Robert Zemeckis em 1992.
Esse filme, que também explora a obsessão feminina pela juventude e imortalidade, conta a história de uma escritora que perde o marido para uma atriz glamourosa e, anos depois, retorna rejuvenescida e disposta a se vingar, após consumir uma poção que promete juventude eterna.
Essa obsessão, porém, vem acompanhada de consequências perturbadoras, revelando que a busca pela aparência ideal pode se tornar um pesadelo.
Narrativas como essas refletem como a juventude e a beleza femininas são idolatradas enquanto a velhice é estigmatizada.
Ao longo dos séculos, na literatura clássica e nos contos infantis, a beleza foi representada como uma virtude essencial, um diferencial de status.
Em “Branca de Neve”, por exemplo, a Rainha Má é consumida pela inveja da juventude da princesa e decide assassiná-la.
Essa fixação com a aparência não é exclusiva das mulheres.
Na mitologia grega, o mito de Narciso exemplifica a vaidade extrema masculina.
Narciso, conhecido por sua beleza, apaixona-se pela própria imagem refletida na água e, incapaz de se afastar, acaba consumido pela própria obsessão.
A história revela que a vaidade e o desejo pela juventude afetam a todos, independentemente de gênero.
O arquétipo de Peter Pan, que recusa o envelhecimento e busca eternamente a juventude, também surge aqui como contraponto.
A imagem do “garoto que não quer crescer” traz à tona a ideia de que essa rejeição ao envelhecimento e busca por uma “eterna juventude” afeta ambos os gêneros.
Em tempos em que padrões estéticos pressionam a todos – homens e mulheres –, a narrativa de Peter Pan nos lembra que a resistência ao envelhecimento tem consequências profundas para nossa identidade e maturidade.
Mesmo a literatura universal, como “O Retrato de Dorian Gray”, (1890) de Oscar Wilde, traz a reflexão sobre a decadência moral atrelada à beleza e ao envelhecimento: o jovem Dorian se apega tão obsessivamente à sua aparência que vende sua alma para garantir que um retrato envelheça em seu lugar.
“A Substância” transporta essas discussões para a realidade atual, em que procedimentos estéticos são buscados a qualquer custo – muitas vezes, até colocando em risco a vida de quem se submete a eles.
A direção de Fargeat, sendo uma mulher, oferece uma visão crítica sobre como o corpo feminino é pressionado a se “aperfeiçoar” constantemente, independente das consequências.
A narrativa mistura surrealismo com tons de horror, capturando o lado sombrio dessa obsessão.
O filme traz um ambiente visualmente impactante. Um dos principais cenários, um banheiro branco, reflete a intimidade da vaidade feminina – um espaço onde maquiagem e cabelo são retocados, criando novas versões de si mesmas.
Porém, nesse banheiro, Elisabeth também descobre o “porão da vaidade”, um lugar onde se escondem os segredos e sacrifícios que vêm com o culto à juventude.
A substância
Ao injetar a “substância”, Elisabeth experimenta uma espécie de “renascimento” brutal, com uma versão mais jovem de si mesma emergindo de suas costas.
Essa representação é intrigante, pois ao invés de surgir da costela ou ventre, como tantas referências simbólicas do corpo feminino, sua nova forma irrompe da coluna vertebral (foto) , sugerindo o peso simbólico que as mulheres carregam em relação às expectativas de beleza.
No entanto, o processo de rejuvenescimento é complexo. A decadência física de Elisabeth ocorre em espaços privados, enquanto sua versão jovem enfrenta a sociedade com a ilusão de perfeição.
O filme parece sugerir que, sem o contraste com a velhice, a juventude não seria glamourizada; e sem a juventude, a velhice não seria desprezada.
Fargeat nos provoca a refletir sobre o papel da sociedade na construção desses estereótipos.
Em várias cenas, ouvimos homens dizendo a Elisabeth para “sorrir”, ecoando o estereótipo de que as mulheres devem ser dóceis e obedientes.
Quando Elisabeth busca a “substância”, toda a negociação é mediada por uma voz masculina sem rosto, que representa uma autoridade invisível. Isso reforça a ideia de que o corpo feminino é manipulado e moldado para atender às expectativas masculinas.
Desfecho
No desfecho, uma nova versão “deformada” de Elisabeth é apresentada ao público.
Diferentemente das outras, que morrem em espaços privados, essa versão se desintegra no espaço público, algo simbolicamente significativo, já que o espaço público é tradicionalmente associado aos homens.
Essa última versão, “imperfeita”, expõe a face cruel de uma sociedade que adora a juventude e descarta quem não se encaixa nesse ideal.
Ao combinar elementos de surrealismo e horror, “A Substância” expõe a fixação cultural pela juventude e a pressão para ser a “melhor versão de si mesmo”.
Fargeat mostra como essa obsessão afeta tanto homens quanto mulheres, levando-os a perder aspectos fundamentais de si.
Afinal, a juventude e a beleza são efêmeras, e a incapacidade de aceitar essa transitoriedade transforma a busca pela perfeição em uma armadilha.
Você deseja ou quer ser a “garota de Ipanema” de Vinicius de Moraes, ou concorda com ele quando diz: “As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”?
Ou está mais próximo de Arnaldo Antunes, que canta: “A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer”?
Qual “substância” tem injetado em si para se tornar a “melhor versão” de si mesmo(a)?
*O autor é graduado em direito e mestre em psicologia.
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