No texto anterior, fiz uma tentativa de sintetizar a biografia da agroecologia, que em breve completará 100 anos de vida. Contudo, faltou espaço. Quatro definições da agroecologia foram apresentadas, mas faltou uma. A agroecologia na perspectiva da mudança (movimento) causa desconforto e gera tensões. São esses aspectos que pretendo tratar nesta segunda parte do texto.
Tema recorrente nos debates sobre a agroecologia, apresentado dentro do contexto do movimento social, é o interesse por valorizar hábitos culturais e práticas tradicionais, transmitidas de geração a geração.
Algumas pesquisas em agroecologia buscam investigar os sistemas produtivos tradicionais, pois eles foram desenvolvidos ao longo de décadas, às vezes séculos, em uma perspectiva muito mais sustentável, integrada à paisagem, que incorpora a diversidade, que protege as florestas e conecta fragmentos florestais, valorizando sistemas que são produtivos e que não dependem necessariamente de insumos sintéticos para operar (adubos, sementes geneticamente modificadas, agrotóxicos etc.), os quais são caros e de difícil acesso para os(as) camponeses(as).
Com a influência de aspectos de caráter de justiça, uma quinta definição, mais contemporânea e aceita no contexto internacional, é apresentada: “o estudo (uma ciência), a prática (um conjunto de técnicas) e a mudança (um movimento) nos sistemas produtivos e alimentares, de maneira justa e solidária para lidar com os efeitos das mudanças climáticas”. Ou então, “a ecologia dos sistemas alimentares”, que incorpora tanto os estudos dos agroecossistemas, que se localizam nos territórios (paisagens/bacias hidrográficas) e que abastecem as cidades com alimentos nutritivos e produzidos de forma sustentável.
Pela riqueza e diversidade histórica e por logo em breve atingir a maioridade, completando um século em 2028, após sua primeira aparição em uma publicação científica, conflitos surgiram e precisam ser pautados para que possamos debater o tema com honestidade e construtivismo. Faz parte do perfil dessa jovem formidável lutar por direitos e justiça, daí, é batata: gera tensões.
Por isso, a agroecologia é muito mais nova do que a ecologia, e é considerada uma ciência interdisciplinar. Significa dizer que a agroecologia vai além de uma disciplina pura, já que é construída a partir de uma gama de aportes científicos e de conhecimentos empíricos – da ecologia, agronomia, economia, sociologia, antropologia, bioquímica, química de solos, ciência animal, engenharias, arquitetura, dentre outras.
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Tensões
Fazer ciência em agroecologia exige uma abordagem interdisciplinar. Isso gera uma certa tensão dentro da academia, já que há pesquisadores(as) que defendem, por exemplo, que algumas áreas das ciências devam ser tratadas como “ciências exatas”, o que pode conduzir a um pensamento de neutralidade, refutando o ativismo socioambiental intrínseco à agroecologia, especialmente na definição das áreas de pesquisa e na sugestão de hipóteses em projetos colaborativos de pesquisa.
Tensões de maior envergadura ocorrem com a agronomia clássica. A agronomia é uma ciência que tem focado, nos últimos anos, no aumento da produtividade, influenciada pelas tecnologias da modernidade. O foco nas práticas tradicionais, na diversidade produtiva e nos serviços ecossistêmicos abordados pela agroecologia, às vezes, causa desconforto para o grupo que defende a agronomia clássica. Na maior parte das vezes, essas práticas tradicionais são desmoralizadas e vistas como arcaicas e impraticáveis por uma boa parcela de agrônomos(as) produtivistas. Atuam, inclusive, dentro dos conselhos de cursos universitários, para retirar conteúdos da agroecologia dos currículos da agronomia, para não “atrapalhar” a formação de agrônomos (produtivistas). Isso gera tensão.
Nesse sentido, pergunto: como encorajar agricultores a seguir um caminho alternativo ao modelo industrial convencional num momento de quebra de safras, aumento na resistência de pragas e doenças, secas prolongadas, erosão de solos e chuvas mal distribuídas? Como sugerir uma mudança na lógica produtivista, que é o foco principal, quando as recompensas econômicas e culturais estão diretamente atreladas ao modelo industrial vigente, que privatiza o lucro e socializa o prejuízo?
Como evitar a alienação de estudantes de ciências agrárias e das ciências da natureza por essas ideias de um mundo alternativo, defensor da natureza, quando, ao mesmo tempo, a maior parte da sociedade brasileira não se interessa pela origem e segurança dos alimentos nem tampouco pela preservação da biodiversidade? Embora essas disputas possam gerar conflitos entre pesquisadores(as), o principal aspecto promotor de conflitos na academia é a compreensão da agroecologia como um movimento social.
Resistência
A agroecologia está associada a uma longa história de luta, de resistência e de contestação a abordagens ditas “modernas” (imperialismo, escravidão, industrialização, intensificação de insumos químicos, transgenia etc.) e essa disputa pode parecer contraproducente, muito rígida ou mesmo hostil ao modelo vigente, normalmente empregado nos centros tradicionais de pesquisa, nas universidades e nas instituições internacionais.
Uma agenda de propostas mais firme e radical, de apoio a grupos que buscam um retorno às práticas mais tradicionais de produção, à reforma agrária popular, valorizando os processos locais, os alimentos produzidos por camponeses, pode tirar do jogo várias figuras importantes da academia e das instituições públicas e privadas para avançar na adaptação do setor agropecuário aos efeitos das mudanças climáticas. E esse é um aspecto importante a ser debatido e superado, urgentemente.
Além disso, vários movimentos sociais, como é o caso do Movimento do Trabalhadores Sem-Terra (MST), incorporaram a agroecologia como pauta central de sua plataforma de lutas, mas o MST, em particular, apresenta uma posição intransigente e de oposição a uma série de atores inseridos no atual sistema alimentar e mesmo no meio acadêmico.
Nesse contexto, alguns estudiosos da agricultura são interpretados a partir de uma abordagem de “estar ou não conosco nessa luta”, o que faz com que algumas pessoas que poderiam contribuir com a agroecologia passem a entendê-la como um espaço difícil e pouco acolhedor para se engajar, e há razões políticas e práticas para isso, como nos movimentos de contracultura, que também promoviam tensões e desconforto.
Business as usual
Firmar posição de centralidade política, ou seja, ficar em cima do muro, parece mais seguro para alguns atores políticos, inclusive aqueles dentro das instituições públicas de ensino e pesquisa. Finalmente, e não menos importante, a jovem ciência, comprometida com a disputa por um sistema alimentar mais justo e solidário, enfrenta a competição com o sistema vigente, do capitalismo predatório do business as usual.
Uma questão comum daqueles que criticam a agroecologia é mais ou menos assim: já que a agroecologia é tão legal, por que não há mais agricultores aderindo às suas práticas? Ressalto que há um conjunto de problemas nessa questão.
Quando o mercado é o chefe capitalista que assume que qualquer ação ou atividade que se destaque seja automaticamente adotada sem nenhum tipo de intervenção, e que as mãos invisíveis do mercado atuarão naturalmente para incorporar a novidade pela maioria dos usuários, ignora que várias corporações capitalistas combatem ferozmente a agroecologia, em parte porque a agroecologia dá uma ênfase maior à soberania alimentar (dentro dos movimentos sociais, mas também com presença cada vez maior na academia) e é extremamente desafiadora aos sistemas alimentares vigentes, que se contrapõem à abordagem capitalista do business as usual.
Um modelo de produção de alimentos que não dependa de insumos pode ser muito bom para os(as) agricultores(as), mas em contrapartida será péssimo para os interesses monetários dessas corporações. Por exemplo, se os(as) agricultores(as) não tiverem que comprar adubos, sementes e agrotóxicos, ou reduzirem muito esses usos, isso será vantajoso para eles(as), para o meio ambiente e para a sociedade, mas não será nada vantajoso para as corporações que produzem e comercializam esses insumos.
Além disso, foi possível verificar, nas últimas décadas, uma retirada estratégica de recursos públicos que financiavam a pesquisa e a extensão rural, que ajudavam a apoiar os agricultores familiares e camponeses sobre boas práticas de produção por meio de programas de extensão continuados e de assistência técnica.
Considerações finais
Atualmente, a maior parte dos agricultores recebe orientações técnicas de extensionistas pagos direta ou indiretamente pelas corporações que comercializam insumos, e que têm interesses evidentes na forma e na abordagem extensionista que é realizada com os(as) agricultores(as). Finalmente, sabemos que o modelo industrial de agricultura tem custos elevados para os produtores, para o meio ambiente e para a sociedade, enquanto a agroecologia internaliza esses custos.
Nesse contexto, a jovem ciência acaba sendo tratada como uma aposta arriscada, e mais cara quando considerados todos os custos indiretos (impostos, impactos ambientais, certificações, necessidade de mão de obra, salários e encargos trabalhistas) que acabamos por pagar sem saber ao adquirir alimentos, sem perceber que a maior parte do lucro fica nas mãos das corporações e não dos(as) agricultores(as).
Para que seja possível uma transformação rápida do nosso sistema alimentar, será preciso incentivo estratégico às pesquisas em agroecologia, uma reforma agrária popular, além de centrar esforços na qualidade de vida dos brasileiros e não mais na saúde econômica de multinacionais que não estão interessadas na saúde da população e muito menos da natureza.
Chegou a hora de + agroecologias.
*O autor é PhD em agroecologia pela Universidade de Aarhus, Dinamarca.
Foto: divulgação