Inicio este texto informando que existem milhares de espécies de cogumelos que são comestíveis, ou seja, que nutrem sem causar mal ao organismo. Todavia, por conta da nossa cultura alimentar, consumimos apenas algumas espécies no Brasil, mas essa não é a mesma realidade em outras partes do mundo.
Em alguns países micófilos (que apreciam e conhecem os cogumelos), dezenas e até centenas de espécies comestíveis são conhecidas por grande parte da população, incluindo o reconhecimento por nomes populares. Essas pessoas sabem como identificar, onde coletar e como cozinhar cogumelos silvestres.
De onde vem?
De onde vem o conhecimento sobre os cogumelos comestíveis? O conhecimento popular sobre os cogumelos comestíveis é passado de geração a geração, mantendo-se latente em comunidades onde esse conhecimento é valorizado e resguardado.
Desde os tempos mais remotos, a espécie humana acumulou um grande volume de informações sobre a biodiversidade e como utilizar a fauna, a flora e a funga (coletivo de espécies de fungos) a seu favor. E, desde então, as informações valiosas, que garantem a subsistência ou sobrevivência das comunidades, são transmitidas para a nova geração. Consequentemente, grande parte do conhecimento que existe hoje sobre o uso de cogumelos vem do conjunto de tradições e do patrimônio cultural de comunidades tradicionais.
Nesse contexto, surge uma questão importante: existem cogumelos comestíveis no Brasil? Sim, no Brasil, mais de 300 espécies de cogumelos já foram registradas como comestíveis. No entanto, pouquíssimas espécies são conhecidas pela população em geral, mas existem comunidades tradicionais, como os Yanomami na Amazônia, que fazem uso de diversas espécies de cogumelos na alimentação.
Outras comunidades utilizam cogumelos no preparo de remédios e simpatias. Infelizmente, os estudos etnomicológicos – que buscam compreender e revitalizar o conhecimento das comunidades sobre os cogumelos – ainda são pouco realizados no Brasil. A hipótese que levanto é de que o consumo diminuto, bem como o baixo nível de estudos e pesquisas sobre o tema, está ligado diretamente com a cultura eurocêntrica advinda de nosso processo de colonização.
Nesse contexto, guardadas as devidas proporções, ainda temos a crença de que a Europa é o centro do mundo e de que todo conhecimento científico e cultural gerado naquele continente possui valor superior. Felizmente, o eurocentrismo é evidenciado e denunciado em diferentes áreas de pesquisa científica e não seria diferente com o tema dos cogumelos comestíveis.
Como comentado anteriormente, muitas espécies de cogumelos comestíveis ocorrem no Brasil, mas continuamos consumindo principalmente uma espécie importada: o cogumelo-de-Paris, também chamado de champignon (Agaricus bisporus ).
Esse cogumelo, vendido principalmente em conserva (pois cresce em locais frios), começou a adentrar o mercado brasileiro em meados do século XX. E é assim que a maioria dos brasileiros conhece o cogumelo: um champignon em conserva no estrogonofe, no molho madeira do filé mignon, na pizza com carnes defumadas ou na salada sofisticada.
Cogumelos comestíveis tropicais
Na gastronomia, os chefes também valorizam outros fungos europeus que merecem destaque, como o porcini (Boletus edulis ) e as trufas (cogumelos subterrâneos), cujo comércio movimenta centenas de milhões de euros anualmente. Quando se realiza uma pesquisa na Internet sobre espécies comestíveis de cogumelos, grande parte da informação encontrada é sobre as principais espécies europeias, que, por conta do clima e da vegetação diferenciada, não ocorrem naturalmente aqui, no Brasil.
Apesar de nos últimos anos alguns chefes brasileiros terem buscado ingredientes que fazem parte da nossa biodiversidade, como as PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais) e os FANC (Fungos Alimentícios Não Convencionais), esses ainda não fazem parte da refeição diária de grande parte da população.
Já que a maioria dos cogumelos comestíveis europeus não ocorre naturalmente no Brasil, e infelizmente possuímos poucos estudos sobre as espécies nativas, uma forma de se conhecer mais sobre o potencial alimentício da nossa micodiversidade é buscar informações sobre outros países tropicais onde haja o consumo de cogumelos nativos.
No Brasil, pouco se divulga sobre a diversidade de cogumelos comestíveis que há em outros países latino-americanos. Ainda, diversos países da África equatorial e tropical, como Gabão, Congo, Tanzânia e Zâmbia possuem comunidades altamente micófilas, que detêm grande conhecimento ancestral sobre cogumelos comestíveis.
Nas épocas de chuvas, os cogumelos são coletados pelas famílias ou são comprados nas ruas, estradas e mercados populares. Por conta de características climáticas e vegetacionais, os cogumelos desses países são muito mais parecidos com os brasileiros do que os europeus.
Considerações finais
O grande desafio é a mudança de paradigma, vencer o preconceito e a micofobia (aversão aos fungos), para que os cogumelos nativos, tão abundantes em nossas matas, possam também ser apreciados pelos brasileiros sem medo.
Nosso complexo de vira-lata também está presente na gastronomia dos cogumelos. Nesse sentido, é preciso desconstruir a ideia do imaginário comum contida na seguinte frase, tão comum de se ouvir por aí: “o [cogumelo] do restaurante é gourmet , o da mata é coisa de gente primitiva”. Não é, não. Apenas falta mais informação sobre eles.
A autora é bióloga, micóloga e professora da UFSCar – Lagoa do Sino .
Foto: Larissa T. Pereira