A conferência de abertura da 34ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia a ser realizada pelo antropólogo Gersem Baniwa, na noite do último dia 23, foi adiada e gerou indignação no evento ocorrido na cidade de Belo Horizonte (MG).
Gersem José dos Santos Luciano, 60 anos, é antropólogo, professor da Universidade de Brasília (UnB) e importante liderança do movimento indígena nacional.
A conferência programada para às 19h30 foi cancelada às 21h45. Segundo a organização do evento, houve atrasos na programação e o conferencista comunicou aos organizadores que não tinha mais condições de falar naquela noite. Sua conferência foi adiada para dois dias depois.
No entanto, a não contenção das falas que o antecederam a fim de preservar a conferência, justamente do único antropólogo indígena da mesa, foi interpretado como um ato de racismo institucional.
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Uma herança colonial
A antropologia é uma disciplina nascida em um contexto colonial. Os primeiros antropólogos realizavam estudos que prometiam compreender a cultura dos povos na África e Ásia para subsidiar a sua dominação por colonizadores europeus.
As antropólogas e antropólogos que fundaram a disciplina no Brasil (e a própria Associação Brasileira de Antropologia) são pessoas brancas e de famílias tradicionais em grandes capitais, especialmente do Rio de Janeiro e São Paulo.
Por ser uma carreira acadêmica, ou seja, cujos empregos estão, principalmente, nas universidades e instituições públicas, quase não havia no Brasil antropólogos e antropólogas não nascidos em famílias endinheiradas.
Até pouco tempo atrás era assim. Aos poucos, os que um dia foram, exclusivamente, alvos de estudos, como os povos indígenas, amazônidas e moradores das periferias urbanas e rurais, tiveram condições e oportunidade de se formar e trabalhar com antropologia.
O próprio Gersem Baniwa faz parte da primeira geração de indígenas formados nessa área.
E a sua presença na conferência de abertura da associação seria um marco rumo à diminuição da assimetria racial, de classe, regional e conceitual no evento.
Contudo, ainda a presença de importantes lideranças indígenas, como o doutor Gersem, não escapa ao rastro colonial da disciplina e da entidade que lhe representa no Brasil.
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“Quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro”
A reação sufocamento da fala de Gersem Baniwa na conferência de abertura da associação brasileira foi imediata.
No mesmo dia, a Articulação Brasileira de Indígenas Antropologes (Abia) lançou uma nota repudiando o ocorrido.
Nela, a instituição afirma que “este episódio não é um fato isolado, mas reflete uma prática colonialista na antropologia brasileira que insiste em marginalizar nossas vozes e subestimar nossas competências acadêmicas”.
Outros antropólogos indígenas que estavam no evento se organizaram para realizar um protesto no dia 25 de julho, nova data da conferência do doutor Gersem Baniwa.
A organizadora do evento, a antropóloga Andrea Zhouri, abriu a mesa pedindo desculpas pelo ocorrido.
Antes que o mediador da mesa, professor João Pacheco de Oliveira (Museu Nacional) fosse chamado, antropólogas e antropólogos indígenas entraram no auditório dançando juntos.
Eles cantavam “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro”, música que é um marco dos atos indígenas brasileiros.
Desse modo, dançando e cantando, eles subiram ao palco levando pelas mãos o professor Gersem Baniwa.
O ato foi aplaudido de pé por cerca de três minutos pelos que esperavam a sua fala.
Tomando a palavra, a antropóloga indígena Kiga Boe Bororo, leu na íntegra a nota da Abia.
“É inadmissível que em um espaço dedicado à antropologia, onde a pluralidade e a inclusão deveriam ser pilares fundamentais, ainda nos deparemos com atitudes que reiteram a exclusão e a subalternização”, expôs Kiga Bororo, claramente emocionada nesse trecho.
Em seguida, Célia Xakriabá, doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e deputada federal pelo Psol-MG, cantou outra música emblemática dos atos indígenas.
Em sua fala, a deputada disse que não queria ver na universidade a mesma política da ausência que vivencia no congresso nacional.
Por fim, o doutor Gersem proferiu uma conferência histórica que foi transmitida online pelo Youtube e está disponível no canal da TV ABA.
Gersem Baniwa, antropólogo e ativista, filósofo formado pela Ufam, tem mestrado e doutorado em antropologia social pela Universidade de Brasília (UnB).
Seus estudos são referência para a educação indígena.
Em sua dissertação e tese, o antropólogo aborda a relação dos povos indígenas com a educação formal do mundo fora da aldeia.
Ele usa da sua própria trajetória acadêmica como exemplo de diversos encontros e confrontos proporcionados pela escola e pela universidade formais.
Nascido em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, em Yaquirana Rendá (sítio Jaquirana), Gersem passou a infância na aldeia onde iniciou o aprendizado sobre o universo de seu povo.
Antes de entrar na militância do movimento indígena, quando jovem, ele estudou em um internato missionário salesiano.
Gersem atuou na formação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e dela foi presidente por dez anos.
Também criou e presidiu a Associação Indígena do Rio Içana (Aciri), primeira associação do povo baniwa. E ainda participou da criação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
É autor do livro “O Índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje”, lançado pelo Ministério da Educação (MEC), Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secade) e pelo Museu Nacional em 2006.
Atualmente, Gersem Baniwa está empenhado na criação da primeira universidade para povos indígenas do Brasil.
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Não é um caso isolado
Em 2018, na edição 31ª da Reunião da Associação Brasileira de Antropologia ocorrida em Brasília-DF, também a mesa de abertura do congresso produziu uma imagem colonial. Pois, as únicas pessoas negras eram as que serviam bebidas aos antropólogos brancos que a compuseram, e os seguranças presentes no local.
A cena provocou indignação dos antropólogos negros presentes, o que resultou na publicação e leitura de uma moção de repúdio. Nela são citados outros fatos ocorridos em edições anteriores da RBA que indicam o racismo institucional como uma prática persistente.
Tal como “em 2005, o professor Kabenguele Munanga propõe à ABA que na 25ª RBA, realizada em 2006, fosse proposto uma mesa para discussão do tema das ações afirmativas e tal pedido foi negado pela diretoria de tal instituição”.
Embora Munanga seja um pesquisador negro renomado no campo da antropologia, sua proposta não foi aceita.
Mas, a mesa que ele propôs foi realizada em 2006 após ser submetida por membros brancos da ABA.
Desde então, o célebre pesquisador jamais voltou a participar como membro da reunião nacional da ABA.
A moção criou o Coletivo de Antropólogas e Antropólogos Negros do Brasil, que conta hoje com 351 membros, segundo um de seus criadores, o antropólogo Gilson José Rodrigues Júnior.
No ano seguinte, foi criado na ABA o Comitê de Antropologues Negres, composto exclusivamente por pesquisadores negros a fim do tratamento do tema no âmbito da associação.
Em 2020, por indicação do referido comitê, o professor Kabengele Munanga recebeu a homenagem mais importante da antropologia brasileira, a medalha Roquete Pinto.
Nota de repúdio da Abia
A Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges (Abia) vêm a público Repudiar o grave acontecimento do dia 23 de julho de 2024, que foi o cancelamento da Conferência de Abertura na 34ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), que está sendo realizada em belo Horizonte (MG). A conferência seria proferida pelo antropólogo indígena Dr. Gersem Baniwa da Universidade de Brasília (UnB) às 19:30, mas às 21h45, os presentes foram informados sobre o cancelamento, devido ao tempo ter sido ocupado por outras atividades da programação.
A ABIA entende este acontecimento não só como um ato de desrespeito com o referido professor, mas com todos e todas nós, antropólogos/as e acadêmicos indígenas. O fato de a organização da 34a RBA não deixar tempo suficiente para que o professor pudesse proferir sua conferência nos faz refletir sobre qual o lugar que os/as indígenas ocupam hoje dentro da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Em quais espaços nos é permitido falar?
Todo mundo fala, menos nós indígenas!
Pode ainda o subalterno falar? Ou a situação etnográfica de tal acontecimento de descaso e desconsideração ao antropólogo Gersem Baniwa apenas evidencia verdades inconvenientes do racismo? Falha da organização ou ato falho de flagrante racismo?
Para nós não sobra tempo, não há interesse .
Será que seguimos sendo apenas meros objetos de pesquisas para a disciplina antropológica ainda colonialista que vive do extrativismo de nossos saberes, realidades e vidas?
Entendemos o que aconteceu nessa mesa não como algo pessoal, diretamente contra o parente Gersem Baniwa. Demonstrando o descaso com nosso conferencista, somado ao fato de não termos nenhum indígena na mesa de abertura deixa evidente o racismo da ausência e o modo como tem sido o processo de inserção efetiva dos/das indígenas antropóloges no espaço da ABA.
Este episódio , não é fato isolado, mas reflete uma prática colonialista persistente na Antropologia brasileira, que insiste em marginalizar nossas vozes e subestimar nossas competências acadêmicas. É inadmissível que, em um espaço dedicado à antropologia, onde a pluralidade e a inclusão deveriam ser pilares fundamentais, ainda nos deparemos com atitudes que reiteram a exclusão e a subalternização, às práticas do escravismo epistêmico de nossos povos, corpos e conhecimentos tradicionais
Exigimos respeito, reconhecimento e espaços dignos para que possamos contribuir com nossas perspectivas e conhecimentos sem sermos submetidos a ações desrespeitosas e discriminatórias.
Assinam, ABIA – Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges Belo Horizonte , 23 de Julho de 2024 524 anos de resistência aos invasores.
Foto: reprodução/F