DiĂ¡rio de uma quarentena | 45º dia, 4 de maio – Manacapuru e duas tragĂ©dias
"Passei parte da segunda-feira conversando com amigos que estĂ£o acometidos com o vĂrus. Com um deles, nĂ£o pude falar, o Ricardo, policial militar. Ele estĂ¡ com o quadro muito grave"

De Neuton CorrĂªa*
Publicado em: 04/05/2020 Ă s 20:23 | Atualizado em: 04/05/2020 Ă s 20:41
Hoje Ă© segunda-feira. SĂ£o 18h40.
No dia em que o ministro da SaĂºde, Nelson Teich, amanheceu e anoiteceu em Manaus, o Amazonas registrou nĂºmeros altos na pandemia do novo coronavĂrus (Covid-19).
Foram 559 novos casos da doença nas Ăºltimas 24 horas.
Isso confirma a fala dos especialistas, que previam o pior da crise para as duas primeiras semanas de maio.
Agora, o Estado tem, no total, 7.242 casos confirmados.
O nĂºmero de mortes tambĂ©m segue em alta. Em 24 horas, 36 Ă³bitos. O Amazonas conta, atĂ© aqui, 584 perdas para o vĂrus.
Passei parte da segunda-feira conversando com amigos que estĂ£o acometidos com o vĂrus.
Com um deles, nĂ£o pude falar, o Ricardo, policial militar. Ele estĂ¡ com o quadro muito grave.
Olhar para o Alto Solimões
É preciso chamar a atenĂ§Ă£o para a disseminaĂ§Ă£o da doença nos municĂpios do Alto Rio Solimões.
Ali, estĂ¡ reunida a maior populaĂ§Ă£o indĂgena do mundo.
Preocupa porque sĂ£o povos de cultura e costumes que podem facilitar o contĂ¡gio acelerado da doença.
Mais grave que isso Ă© que esses povos possuem baixa imunidade e precĂ¡ria assistĂªncia mĂ©dica.
A informaĂ§Ă£o que traz novo alerta para isso sĂ£o os dados da doença nos municĂpios dessa regiĂ£o.
Tabatinga, por exemplo, jĂ¡ Ă© o segundo municĂpio do interior do Amazonas com maior nĂºmero de casos da doença. Tem 232 casos e nove mortes. Superou municĂpios maiores como Parintins e Itacoatiara.
No Brasil
O Brasil chega a 105 mil casos e 7.288 mortes. Hoje, houve aumento de 4.075 casos e 263 Ă³bitos em 24 horas.
A RepĂºblica passou o dia todo repercutindo o apoio que o presidente deu ontem a atos autoritĂ¡rios que pedem o fechamento do Legislativo e do JudiciĂ¡rio e sua conduĂ§Ă£o ao poder absoluto.
Ele nomeou o novo chefe da PolĂcia Federal, que, imediatamente, trocou o delegado que comandava as investigações contra seus filhos, no Rio de Janeiro.
Mesma preocupaĂ§Ă£o e pressa o presidente ainda nĂ£o teve com a pandemia.
Manacapuru e duas tragédias
A divulgaĂ§Ă£o dos dados do coronavĂrus em Manacapuru, a cidade mais contaminada do Brasil, me trouxe uma triste lembrança, hoje.
No dia 3 de maio de 2008, um sĂ¡bado, a pretexto de apanhar de carapanĂ£, e reencontrar nosso colega de A CrĂtica Ari Furtado, eu e o veterano jornalista Wilson Nogueira decidimos pegar a estrada e atravessar o Solimões para acamparmos na vĂ¡rzea.
Na cidade, na casa do Ari, antes da travessia do rio, encontramos jovens agitados com uma festa de beiradĂ£o que ocorreria perto de onde passarĂamos Ă noite.
De fato, aconteceu o que havĂamos planejado. Muito carapanĂ£.
Na beira do rio, acendemos uma fogueira e o nosso barulho atraiu a atenĂ§Ă£o dos moradores do Pesqueiro, nome do local onde acampamos.
Por ali, Ă tarde e no começo da noite, era possĂvel ver a movimentaĂ§Ă£o de jovens e adultos rumo Ă festa.
Cansado da brincadeira, acabamos adormecendo por volta de meia-noite.
Acordei com o Sol aparecendo e fiquei apreciando a sinfonia dos pĂ¡ssaros, o murmĂºrio do rio e o bater dos moradores dos barcos e rebocadores que navegam por aĂ.
Minutos depois, a voz de uma mulher dizia assustada: “Meu Deus do cĂ©u!”.
No mesmo instante, batidas no terreno sedimentado da vĂ¡rzea, vindas de todos lados, revelavam uma correria desesperada, com uma sequĂªncia de gritos de “Meu Deus!”.
Depois disso, levantei tambĂ©m assustado. O Wilson e o Ari tambĂ©m saĂram.
Era o Comandante Sales, barco que retornava da festa e acabara de naufragar. De onde estĂ¡vamos ainda era possĂvel ver uma parte do casco da embarcaĂ§Ă£o descendo o rio.
Eu, o Ari e o Wilson demos o furo de reportagem, reunimos o equipamento que tĂnhamos, fretamos uma lancha e seguimos para o local.
Resgate
Conseguimos chegar ao barco quando os Bombeiros iniciavam o resgate das vĂtimas.
E, para a nossa tristeza, o primeiro dos corpos resgatados era de um dos rapazes que estavam na casa do Ari e outros que passaram por nĂ³s, enquanto apreciĂ¡vamos a noite de fogueira e de carapanĂ£, na beira do Solimões.
Hoje, quando o prefeito Beto D’Ă‚ngelo lembrou da tragĂ©dia, ao falar dos nĂºmeros do coronavĂrus, minha cabeça se voltou para aquela pilha de corpos tirados do fundo do rio, uma imagem que me deixou estatelado, enquanto retornĂ¡vamos para a redaĂ§Ă£o para escrever a tragĂ©dia.
O Comandante Sales transportava 80 pessoas e 54 morreram no acidente. No dia seguinte, havia velĂ³rio para todos os cantos da cidade.
Hoje, Manacapuru conta 585 contaminações pela doença e uma pilha de 35 cadĂ¡veres que sĂ³ cresce. E mais triste: nem velĂ³rio haverĂ¡.
*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas
Arte: Alex Fideles