Em favor da antropologia
"Antropólogos sociais são chamados para julgar o Festival Folclórico de Parintins porque são formados para ler discursos construídos a partir dos símbolos". Leia no artigo da antropóloga Dassuem Nogueira.

Por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 05/08/2025 às 06:24 | Atualizado em: 05/08/2025 às 06:24
O presidente do boi-bumbá Caprichoso, Rossy Amoedo, em entrevista ao portal AM em Pauta, publicada em 2 de agosto, defendeu uma revisão no perfil profissional de julgadores do Festival Folclórico de Parintins para 2026.
Além disso, defendeu um número maior número de jurados, que passariam de 9 para 27, sendo 9 por noite.
Em sua fala, Amoedo ressaltou que avalia inadequado que profissionais da antropologia sejam jurados de um festival “altamente visual”, segundo consta na matéria.
Amoedo diz que não tem nada contra antropólogos. Mas, fica claro que também não tem nada a favor.
Os intelectuais
A maioria das pessoas, de fato, não sabe como um profissional dessa área trabalha, qual sua matéria-prima.
O mesmo vale para filósofos, sociólogos, cientistas políticos e demais categorias profissionais das humanidades, os chamados intelectuais, que têm carreiras, quase exclusivamente, acadêmicas.
De fato, os estereótipos sobre tais profissionais é o de intelectuais que trabalham com conceitos e teorias abstratos, distantes da realidade concreta. Seriam profissionais de muita reflexão, mas sem muita utilidade prática.
Soma-se a isso, a noção de que os intelectuais são elitizados e eruditos. O que seria o avesso de popular.
Curiosamente, os estereótipos aplicados aos intelectuais também se estendem aos artistas, acadêmicos ou não, populares ou não.
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Os quatro campos
Ocorre que a antropologia é dividida em quatro campos de conhecimento:
1) antropologia física, que estuda genética, evolução, adaptação, em diferentes contextos culturais, sendo a sub categoria mais famosa a de antropologia forense, que estuda padrões de crimes por meio dos vestígios cadavéricos.
2) A arqueologia, que estuda culturas a partir de seus vestígios materiais ao longo do tempo;
3) A linguística, que estuda a linguagem humana a partir das estruturas das línguas e da comunicação social;
4) E a antropologia social, que estuda sociedades humanas a partir de relações sociais e cultura.
A antropologia parte do visual
Na antropologia social, de onde são os antropólogos que, comumente, atuam como julgadores do Festival Folclórico de Parintins, a matéria prima é, justamente, o que se vê.
Clifford Geertz (1926- 2006), considerado um dos fundadores da antropologia moderna, funda a premissa de que “a cultura é pública”. E, por ser pública, ela pode ser lida e compreendida.
Antropólogos e antropólogas trabalham lendo símbolos públicos de diferentes aspectos da cultura.
Cada símbolo possui um significado. Cada objeto, fala, gesto, silêncios, são símbolos que compõem discursos culturais.
O estereótipo
Comumente, pensa-se que antropólogo são aqueles que trabalham com povos indígenas.
Esse é um estereótipo que tem um fundamento histórico, ja que, a antropologia nasce em um contexto colonial.
Os europeus, colonizadores da África, Américas e Oceania, enviavam estudiosos até os povos nativos para compreender como funcionava sua organização social.
A ideia era conhecer sua cultura para facilitar a exploração e a dominação.
Afinal, sempre em menor número, colonizadores precisavam de braços para trabalhar.
Mas, há cerca de um século, a antropologia vem se consolidando como uma disciplina versátil em termos da matéria-prima que estuda.
Um antropólogo não é um especialista em povos indígenas, é um especialista em antropologia.
Antropologia do poste
Com métodos e técnicas de “leitura cultural”, podemos compreender uma sociedade a partir de qualquer coisa.
Costumo brincar que é possível ler uma sociedade a partir dos postes das ruas de uma cidade: onde estão os postes históricos, os que foram restaurados, onde não há iluminação pública?
Entre tantos recortes, é possível fazer antropologia dos postes porque nada nas sociedades está posto à toa, nem os postes. Até eles têm algo a dizer.
Em favor dos antropólogos
Antropólogos sociais são chamados para julgar o Festival Folclórico de Parintins porque são formados para ler discursos construídos a partir dos símbolos.
O boi-bumbá de Parintins é puro simbolismo. O boi de pano é um símbolo de uma imensa trajetória cultural, social, histórica, linguística, artística.
Os bois não existem para simular bois reais, mas para discursar sobre as nações Caprichoso e Garantido, Palmares, Francesa e baixa do São José.
Os símbolos estão nas letras das toadas, nas alegorias, nas cores, nas coreografias.
Eles são eleitos para representar as culturas indígenas, caboclas e “brancas”, nos rituais, nas “lendas amazônicas”, “figura típica regional”, nas alegorias.
Quando um artista escolhe um conjunto de elementos para constar em uma alegoria, ele quer comunicar algo ao público.
As alegorias não são montes de beleza vazias de significado, nada é, nem os postes.
Cada ano, há um tema; para cada noite, há uma temática; para cada item, há um discurso.
São esses os motivos que habilitam antropólogos/as para serem julgadores/as de festivais populares, como o dos bois de Parintins.
*A autora é doutora em antropologia.
Foto: reprodução/Repórter Parintins