No texto da semana passada , falei das doenças infectocontagiosas que há muito tempo afligem a cidade de Manaus, como a hanseníase e a tuberculose. Hoje, falarei de outra doença, tão grave quanto estas – a doença do neopentecostalismo.
De acordo com o levantamento feito pela Ordem dos Ministros Evangélicos do Amazonas (Omeam), publicado no portal searanews.com.br, nos últimos 20 anos, a capital amazonense apresentou um crescimento de 325% no número de igrejas, totalizando cerca de 8,5 mil templos.
Não é possível afirmar que todos esses templos sejam do movimento neopentecostal, mas, convenhamos, é um crescimento alto. É importante dizer, também, que, dentro do protestantismo brasileiro, há uma enorme diversidade de denominações.
Todavia, grosso modo, podemos organizar as igrejas evangélicas no Brasil da seguinte forma: tradicionais-históricas, pentecostais e neopentecostais, contando ainda com as adventistas.
À guisa de exemplo, podemos dizer que a Igreja Presbiteriana do Brasil, a Igreja Luterana, a Igreja Metodista e a Igreja Batista, são tradicionais-históricas, ainda que possuam “versões renovadas”, com teologia e liturgia neopentecostalizada – o que explicarei adiante.
No campo das igrejas pentecostais, temos como principal exemplo a Igreja Assembleia de Deus e suas ramificações, bem como a Igreja Deus é Amor. Elas também sofreram influências da teologia neopentecostal, fundamentalmente, a partir dos anos 2000, o que promoveu diversos rachas entre elas.
Por fim, temos as famigeradas igrejas neopentecostais, cujo surgimento no Brasil ocorreu no final dos anos 70 do século XX, ainda que sua expansão e notoriedade tenham ocorrido, fundamentalmente, a partir da década de 1990. Os principais expoentes desse segmento são: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus.
É importante essa distinção, pois, quando se trata do segmento evangélico no país, não há homogeneidade. Dependendo da denominação, a matriz teológica e a liturgia mudam bastante, não sendo possível a generalização de seus usos e costumes para todos.
Em meio a tudo isso, pode ser que você esteja se perguntando: mas o que vem a ser a teologia neopentecostal? Para mim, trata-se de um amontoado de erros hermenêuticos, exegéticos e históricos, mas vamos às explicações possíveis dentro deste espaço.
A teologia neopentecostal acrescentou ao culto e à vida cristã alguns elementos, tais como: batalha espiritual, maldições hereditárias, possessões demoníacas que resultam em doenças físicas e emocionais, bem como o fracasso financeiro. Seus cultos não são teocêntricos, mas, sim, antropocêntricos, com o fiel precisando ser liberto por uma figura humana de alguma coisa o tempo todo. Poucos são os momentos de culto a Deus.
Nesse âmbito, a libertação é condição sine qua non para a prosperidade, pois, antes dela, a pessoa deixa de ter êxito em todas as áreas de sua vida por conta de pecados, ações de demônios, maldições hereditárias etc. Ou seja, ele/a precisa ser liberto/a, o que deve ocorrer em um templo e pelas mãos de alguém que não prega a palavra de Cristo, mas busca atingir seus próprios interesses.
Outro aspecto importante da teologia neopentecostal é a chamada fé rhema , onde o crente é sustentado por tudo aquilo que sai da boca de Deus, de sua Palavra – viabilizada por um pastor. Então, ele/a só precisa ter fé, muita fé, pois, se há alguma promessa, uma benção na Bíblia, ela acontecerá na sua vida após sua libertação. Uma vez livre, ele/a poderá exigir/determinar a liberação da sua benção.
Noutras palavras, se a pessoa é cristã, filha de Deus, nessa visão religiosa, ela necessariamente tem que ser financeiramente próspera.
Todavia, do começo ao fim, tanto no novo quanto no velho testamento, o centro da mensagem bíblica não é a riqueza material, não é a promessa de vida próspera e abastada neste mundo, pelo contrário, conforme o registro de João 16:33, o próprio Jesus disse que neste mundo teríamos aflições, mas bom ânimo, pois ele venceu no mundo – ou seja, a única promessa é a de que haverá esperança para seguir e não dinheiro para ganhar.
Não é difícil concluir, então, que a mensagem de Jesus vai em direção oposta à pregação neopentecostal e nos coloca o seguinte questionamento: afinal, qual é, de fato, o propósito da igreja cristã? Qual é a razão de sua existência? Bem, seja ela católica ou protestante, essas perguntas não são respondidas com a busca por bens materiais ou por um estilo de vida nababesco e hedonista.
Segundo o registro feito por Mateus, no capítulo 6:33 de seu evangelho, certa vez, Jesus, ao falar das preocupações da vida, como comer, beber e vestir, disse: “busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas”.
Antes disso, no mesmo capítulo, ele já havia exortado para que o povo não acumulasse “tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem e onde os ladrões arrombam e furtam”. O que Cristo faz é orientar seus ouvintes a acumular “tesouros nos céus, onde a traça e a ferrugem não destroem e onde os ladrões não arrombam nem furtam”.
Voltando à questão da fé rhema , é preciso registrar que a fé cristã, a verdadeira, também não é algo puramente abstrato ou mágico, ela é, acima de tudo, uma fé racional, uma convicção que se materializa em valores e ações práticas na vivência do cotidiano. Essa convicção faz com que o culto do verdadeiro cristão seja prestado de forma racional, consciente e livre. Esse fundamento vem dos escritos de Paulo de Tarso, que ocupa lugar central no novo testamento.
Em sua carta à igreja de Roma, no capítulo 12.1, Paulo roga àqueles fiéis que “se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”, pois este seria um culto racional. No verso seguinte, ele pede aos cristãos que “não se amoldem ao padrão deste mundo, mas que se transformem pela renovação da sua mente”, concluindo que isso deve ser feito “para que [os fiéis] sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”.
E qual seria essa boa, perfeita e agradável vontade? O próprio texto bíblico, em síntese, revela: amar a Deus sobre todas as coisas, amar ao próximo como a si mesmo, pregar o evangelho e cuidar dos órfãos e viúvas. Trazendo essa mensagem para os dias atuais, isso significa cuidar dos necessitados, assistindo-os em suas necessidades materiais e/ou espirituais.
Portanto, a verdadeira igreja cristã, o verdadeiro culto cristão – não é uma reunião, nisso insisto, é um culto – deve ser racional e vertical, dirigido somente a Deus. Um culto teocêntrico, uma adoração sincera e inteligível.
Isso implica dizer que, em uma ocasião como essa, não há espaço para pedir dinheiro, fazer promessas de prosperidade, realizar curas sobrenaturais, expulsar demônios, quebrar maldições ou fazer barganhas com Deus.
Mesmo assim, seguindo, teoricamente, os mesmos escritos, não é isso que se vê nas atuais igrejas neopentecostais brasileiras. Sua liturgia é conduzida pela irracionalidade, pela emoção, pelo medo, pela chantagem, por falsas promessas de vida próspera mediante o pagamento de alguma coisa, configurando, enfim, uma liturgia do charlatanismo. Nesses lugares, o fiel é levado a adorar qualquer coisa, menos a Deus.
Seria possível nos enveredarmos por essa crítica em inúmeros textos que desconstroem a teologia neopentecostal, mas deixemos para outras incursões, pois o que pretendemos aqui e falar dessa questão na cidade de Manaus, considerando sua contaminação pelo vírus do neopentecostalismo.
Cidade essa que, vale destacar, tem mais de 2 milhões de habitantes e toda sorte de problemas sociais. Só nos últimos trinta anos, Manaus passou a ser disputada e dominada por facções criminosas, tornando-se rota do tráfico internacional de drogas e, mesmo com a pujança econômica dada pelo Polo Industrial, ainda é uma cidade violenta, desigual e desumana, o que equivale a um terreno fértil para o proselitismo neopentecostal.
Lá, as três maiores denominações neopentecostais do Brasil e do mundo, atuando como empresas, disputam palmo a palmo cada espaço da cidade, cada território e cada fiel. A cidade vive a “pandemia do engano”, da deturpação da mensagem bíblica original e do verdadeiro propósito de uma igreja cristã.
A doença do neopentecostalismo, assim como as biológicas citadas no texto da semana passada, têm infectado e levado a óbito muitas pessoas. Neste caso, não se trata de morte física, mas sim, de engano, de morte da alma, da esperança, do amor e da fé.
Sociólogo
Foto: Facebook/Igreja Apostólica Novo Amanhecer/Manaus