O brasileiro Leandro Gonçalves de Andrade, de 36 anos de idade, não sabe quem é o presidente do país.
Da mesma forma, ele não sabe quem é o governador do Amazonas. Nome de vereador, deputado e senador também lhe é algo estranho.
“Eu não entendo de política”, justifica-se.
O único político que diz conhecer e que lembra o nome é o do ex-presidente Lula, do qual disse que já esteve a poucos metros.
Sua companheira, Soledade do Nascimento, de 52 anos, também não conhece nenhum político.
Nem tinha por que falar, pois o que mais lhe incomodava era uma febre que lhe acomete há alguns dias.
Dona Soledade supõe que tenha sido consequência de um suco de laranja que tomou, comprado de um mercadinho “ali em cima”.
Leandro e Soledade moram na avenida das Torres, o mais importante corredor viário do eixo Norte e Centro-Sul de Manaus.
Eles não sabem, mas no começo desta avenida, a sete quilômetros dali, moram políticos influentes e as maiores fortunas da cidade.
Leandro e Soledade são moradores de ruas. No caso, moradores da calçada da avenida Torres. São novos moradores. Estão ali há um mês, dizem os feirantes lá de cima.
“A gente sabe que não é certo e que eles (Prefeitura) podem tirar a gente daqui a qualquer momento”, diz ela, quando perguntada sobre a barraca onde vivem.
Sim. É uma barraca coberta e forrada de plásticos, que não protege da chuva, muito menos do calor. Mede um metro de largura, para deixar um espaço para pedestres, um metro e um pouquinho de comprimento, pois não cabe direito um colchão de solteiro deitado e tem uma altura de menos de um metro e meio, porque é bem mais baixa do que os meus 1,60m.
O endereço foi escolhido por eles estrategicamente.
“Fica perto da feira (da Cidade Nova, perto do T3). É melhor”, dizem.
Ali, eles conseguem catar latinhas e tudo de metal e ferro que encontram pelas ruas e acham nas matas das proximidades.
Também escolheram o Parque Samaúma, porque, lá embaixo, o verde vizinho lhe oferece o friozinho da madrugada e a água gelada de um igarapé, onde tomam banho.
Antes, eles moravam na calçada do Pronto Socorro Platão Araújo, na Zona Leste. “Mas ali ficou muito perigoso”, conta Leandro, dizendo que na avenida das Torres se sente mais seguro.
Chegada a Manaus
Sempre altivo, sem lamentar a condição de vida que leva hoje, diz que sua vida mudou há dois anos, quando seus pais morreram vítima da covid-19.
Sem pai nem mãe, indígenas, com os quais trabalhava numa comunidade indígena do Município de São Gabriel da Cachoeira (AM), ele resolveu se mudar para a cidade e de lá para a capital, com sua primeira companheira, com a qual teve dois casais de filhos.
Mas Leandro conta que assim que chegou a Manaus, há quatro meses, se separou da esposa por decepção amorosa, sobre qual não quis comentar.
Leandro carrega uma saca onde havia uma máquina de costura velha, que venderia na sucata
A companheira
Foi, porém, essa separação que fez com que ele conhecesse Soledade. “Essa mulher trabalha muito. Quando ela está boa, a gente tira bem”, assevera. Ela já catava latinhas quando ela a conheceu.
A Soledade do Nascimento também não é de Manaus. Ela nasceu em Alenquer, no Pará. Ela não se recorda muito bem o ano que chegou por aqui. Não se recorda também da família que ficou, mas fala da irmã, que mora em Manaus e que guarda as coisas que não pôde levar para o barraco.
Soledade também perdeu o pai. “Não sei quando”, disse ela, logo em seguida, contando com a ajuda de Leandro: “Foi na semana passada”.
Invisível aos carros, Soledade ardia em febre na tarde desta quarta-feira
Como é morar na rua?
“É muito perigoso, porque a gente encontra muitos elementos querendo fazer o mal, mas Deus não deixa. Aqui na avenida das Torres a gente nunca teve problema”, respondeu ele.
Como vocês dormem nesse espaço? Dá pra duas pessoas?
Não dá, mas a gente dá um jeito. A gente dorme coladinho”.
O que você pensa da vida, vivendo assim?
“Eu penso da vida é sair da rua e viver como eu vivia”.
Perguntado quais eram suas memórias da aldeia de seus pais, Leandro respondeu:
“Na aldeia mesmo eu só ia mesmo visitar parentes e ir embora. Mas eu já flechei anta com índios brabos. Bando de porco a gente entrava com doze, treze flechas, cada um. Nós arriava seis, sete queixadas, pra gente comer”.
O que você acha que tem mais valor na vida da gente?
“Meu pai e minha mãe. Por isso, saí de lá e deixei meus cinco irmãos. Tudo o que eu falo, senhor, é verdade. Eu não gosto de mentira, não. Eu sou um preto, mas meu pai me ensinou a trabalhar, não mexer nada, de ninguém”.
Esperança
O casal ainda tem esperança de que a vida deles pode mudar.
“A rua não é segura. Só aquele lá de cima que pode guardar eu, você e qualquer um que mora na face dessa terra”.
Sonho e recado
Em vídeo, o BNC pediu que eles falassem de um sonho e mandassem um recado para a classe política. Veja o que eles disseram.
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Pesadelo
Quando a reportagem já se despedia do casal, Leandro chamou e disse: “Hoje, eu acordei sonhando com barulho de tiro. Eu acordei não era nada. Passei o dia pensando nisso. E agora você aparece. Oh, Meu Deus!”, disse, em tom de esperança.
Três barracas
Em toda a avenida, já são três barracas instaladas. Duas delas estão ali há mais de um ano.
Barraco se instalou no início da avenida das Torres
Barraco na Cidade Nova 1
Fotos: Neuton Corrêa/BNC AMAZONAS