Clima atípico derruba exportação de guaraná saterê-mawé pelo segundo ano
Para este ano, o consórcio exportador da terra indígena no Amazonas estima uma quantidade abaixo das duas toneladas comercializadas no ano passado.

Por Wilson Nogueira
Publicado em: 29/09/2024 às 08:40 | Atualizado em: 29/09/2024 às 10:24
A estiagem extrema do ano passado e deste ano derrubou a produção e, consequentemente, a exportação de guaraná da terra indígena Saterê-Mawé, localizada nos municípios amazonenses de Barreirinha e Maués, para níveis inexpressivos e preocupantes.
Para este ano, o consórcio exportador da terra indígena estima uma quantidade abaixo das duas toneladas comercializadas no ano passado. Trezentas das cinco mil famílias saterê-mawé estão cadastradas nesse grupo comercial.
Os saterês-mawés consorciados exportam guaraná e outros quinze produtos florestais desde 1993, para empresas italianas e francesas, que os distribuem para outros 22 países do continente europeu.
O presidente do consórcio, Obadias Garcia, relatou que todos os itens da pauta de exportação da terra indígena Sateré-Mawé, entre os quais guaraná, castanha, copaíba, andiroba, urucum, unha de gato, mirantã, crajirú etc., foram atingidos pela escassez de chuvas e excesso de sol.
“A questão do clima é muito difícil. Há dois anos que tem falta de guaraná. Neste ano, nem sei se vamos conseguir [duas toneladas), porque, com excesso de sol prolongado, as flores caem”, disse Garcia.
A safra do guaraná na região começa em outubro e se estende até março.
Os frutos do guaraná dos saterês-mawés têm certificado de procedência de origem, expedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Nacional Brasileiro (Inpi), porque, entre outros fatores, não são modificados, geneticamente, em laboratórios científicos.
Com esse diferencial, em relação ao guaraná produzido para a indústria de refrigerantes, o consórcio indígena consegue negociar seus produtos a preços considerados justos.
Os importadores pagam € 35 (R$ 304 na cotação da última quinta-feira) por quilograma, independentemente da quantidade oferecida pelo consórcio.
No mercado nacional, os preços oscilam conforme o desempenho dos guaranazais: preços altos na entressafra e baixos no pico da colheita.
Nas entressafras anteriores a 2023, o preço do quilograma oscilava entre R$ 50,00 e R$ 60,00, e nas safras entre R$ 60,00 e 100,00, informaram compradores de sementes torradas.
Na safra rareada do ano passado, o preço do quilograma chegou a R$ 120,00 na porta dos produtores.
Para participar do mercado de preços justos, os produtores precisam cumprir um protocolo de política de etnodesenvolvimento, modalidade econômica que respeita a autonomia e a autodeterminação dos povos indígenas, na realização de atividades autossustentável.
O rol de exigências passa pela certificação de origem territorial e pelo georreferenciamento de cada plantação consorciada.
O lucro apurado com a exportação é distribuído entre os consorciados e investido em “tecnologias sociais”, como treinamento de pessoal na área agroflorestal, com objetivos comerciais e socioambientais.
“A proposta do nosso consórcio é disseminar nas escolas das aldeias a importância do guaraná para a cultura e economia saterê-mawé. Mas, para isso, é necessário que o governo introduza o sistema agroflorestal como disciplina escolar”, disse Obadias.
Planta mitológica
Além do valor comercial, o guaranazeiro é uma planta que fundamenta a cosmologia saterê-mawé, pois surgiu do resultado do amor de uma cobra com uma mulher.
O irmão da jovem mulher, com inveja da cobra, mata o sobrinho indesejado; a mãe, por sua vez, arranca os olhos do filho e os enterra.
Do par de olhos nasceram dois guaranazeiros, um saterê-mawé verdadeiro e outro saterê-mawé falso, o waraná e o waranarana respectivamente.
É por isso que os frutos do guaranazeiro têm o formato de olhos humanos, com pupilas brancas, íris pretas e escleróticas brancas.
Isso aconteceu no tempo mitológico, quando os saterê-mawé passaram a existir como filhos do guaraná verdadeiro, como são conhecidos até os dias de hoje.
O mito, acentua Obadias, por se referir, também, à realidade, reforça o fundamento que torna o guaraná um fruto sagrado que permeia toda a vida espiritual e material do povo saterê-mawé.
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Comércio local
Os guaranazais mais prejudicados com a estiagem extrema no Amazonas são os dos pequenos produtores indígenas e não indígenas.

A maioria está localizada nos municípios de Maués, Presidente Figueiredo e Urucará.
Com os rios secos e as temperaturas extremas, os guaranazais reduzem a produção e a produtividade drasticamente. Primeiro, porque as flores secam e caem por falta de água, antes e após a polinização; depois, porque os frutos gerados não atingem o tamanho normal.
Beneficiadores de produtos agroflorestais atestam que os pequenos produtores padecem coma a seca dos rios, que se transforam em lagoas ou em pequenos fios de água, cada vez mais longe das plantações e das casas dos agricultores.
“Geralmente, eles têm que vencer até cem metros de lama acima da cintura para encontrar fios de águas”, informa Luka Maués, que possui uma média indústria de beneficiamento de produtos agroflorestais na cidade de Maués.
Ele explica que os produtores indígenas são os mais afetados, uma vez que a maioria não possui poços artesianos. Eles também precisam dos rios porque, tradicionalmente, sempre separaram e lavam a semente do guaraná com bastante água limpa e corrente, antes de levá-la à secagem em forno de barro à lenha.
“É por esse processo tradicional que a semente se torna comestível in natura”, acentua Maués.
Mais que isso, a água é crucial para a vida dos ribeirinhos, já que é através dela que se deslocam, pescam, comercializam produtos e com ela cozinham os alimentos, tomam banho, e vivem plenamente. A estiagem estrema coloca essa população no extremo da sobrevivência.
Competição
Maués disse acreditar que o preço da semente de guaraná vai aumentar nesta safra, em razão da política de compra da indústria de refrigerantes.
Para serem beneficiadas com descontos de impostos administrados pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), elas precisam agregar 0,5% de xarope de guaraná nativo em seus produtos.
Com a safra de sementes em baixa, os fabricantes de xarope pagarão mais para cumprir essa exigência.
“As indústrias pagam o preço que for necessário para abater impostos, sem que isso afete os preços dos seus produtos”.
Assim, a agroindustrial local, que vende derivados in natura, como guaraná em bastão e guaraná em pó, terá que majorar seus preços, o que implicará queda nas vendas ao consumidor final.
Por isso, a tendência da indústria de concentrados é a de sempre pagar mais que que os processadores de guaraná in natura.
Maués, diante do comportamento atípico do mercado, disse que vai lançar um novo produto: um achocolatado com 8% de guaraná, para compensar o alto preço da matéria-prima que movimenta a sua pequena indústria.
“Acredito que o preço do cacau não vai subir tanto”, aposta o empresário.
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Produtor de mudas
Outro em empresário, Luís Canindé, concorda que o pequeno produtor de guaraná mais prejudicado pelas mudanças climáticas.
Além de perder com a queda da produção, o agricultor ainda emprega mais horas de trabalho entre o plantio, colheita e torra das sementes. Os produtores que não têm água de poço artesiano acabam não se beneficiando, como deveriam, com os preços da compra em alta.
Canindé atua, principalmente, na criação e venda de mudas de guaraná, em terras dos arredores de Maués.
Ele produz, em média, 100 mil mudas por ano, que ocupam uma área de 14 hectares irrigadas com água de poços artesiano.
“Sem irrigação não tem como produzir nada”, enfatizou.
Fotos: divulgação