A roda de conversa com participação da socióloga Marilene Corrêa, neste dia 18 de janeiro, um sábado, no salão multiuso da Valer Teatro, em Manaus, transformou-se em desagravo pela exclusão das representações socioculturais da Amazônia na Conferência de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (COP-30), marcada para novembro, em Belém (PA).
A COP-30 foi tratada por debatedores do evento como “fraude”, “uma festa”, “grande espetáculo”, um “grande negócio”, entre outras caracterizações nada afáveis.
Marilene é professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Ela integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS), estrutura ligada à Presidência da República, e compõe a diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Ela apresentou dados e fatos das discussões nacionais e internacionais a respeito da realização da COP-30, a COP da Amazônia. Um dos aspectos dessa agenda é a flagrante exclusão dos movimentos sociais, das academias científicas e das populações tradicionais amazônicas.
Marilene Corrêa integra conselho ligado à Presidência da República
Novo foco
Marilene e os debatedores entendem que os organizadores do evento, inclusive os do Brasil, no caso a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Universidade de São Paulo (USP), desconsideram os conhecimentos ancestrais e científicos produzidos na região. O problema foi facilitado pela ação da crise climática na Amazônia.
“Vivemos crises ambientais enormes, criminosas ou consequência das atividades predatórias. Aí, a Amazônia ficou mais em foco que o Brasil. Agora, a Amazônia aparece como uma área em que o Brasil e os países amazônicos não têm competência para protegê-la, e que coisas urgentes precisam ser feitas, caso contrário, tudo o que foi feito antes não significará mais nada, porque deixaram a Amazônia pegar fogo”, assinalou a socióloga.
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Interesses do G20
Para Marilene, a instituição internacional e multilateral, mais interessada nos resultados dessa conferência é o G20, grupo de países aos quais 80% das economias do mundo estão agregadas.
“Eles esperam poder influenciar a COP-30 e vice-versa, para ajudar a definir os mecanismos de financiamento. Eles esperam definir esses mecanismos e estabelecer as metas de redução de emissão de gases de efeito estufa, promover a transição energética, liderar e superar contradições na política energética interna”, disse a socióloga.
Protagonismo real
Na avaliação da pesquisadora, o Brasil perdeu o protagonismo real da conferência da Amazônia, uma vez entendida agora como a região de floresta que precisa ser salva por instituições socioeconômicas e estados externos, para parar o processo de depredação de seus recursos naturais, entre os quais, os estratégicos para a transição das matrizes energéticas.
Esse quadro veio a ser reforçado com a política de sucateamento dos órgãos estatais de defesa do meio ambiente, da educação e da saúde no governo Bolsonaro, com as queimadas recentes e com o desastre ecológico no Rio Grande do Sul.
Assim, o Brasil deixou de ser visto como país de legislação forte para o meio ambiente e políticas públicas exemplares às populações da floresta.
Como efeito, os planejadores e executores da COP-30 se acham no direito de determinar suas políticas de cima para baixo, clássica postura de “colonialismo externo e interno”, como havia explicitado a professora da UFPA Violeta Loureiro, na roda de conversa anterior.
Protocolo de governadores
Em nível regional, Marilene Corrêa acredita que as pautas do G-20 são formuladas pelo Protocolo de Governadores, criado pelo governador do Pará, Jader Barbalho, com outras lideranças políticas, em nível do executivo.
“Esse protocolo botou no bolso as instituições sindicatos e movimentos sociais, e passou a articular a pré-COP e está regulando a COP”, acentua a palestrante.
Ela concorda com a pesquisadora Violeta Loureiro, que questiona o porquê do relatório final da COP-30 ser feito por instituições “de fora”, quando existe a Universidade Federal do Pará (UFPA) e outras com as mesmas competências em Belém que poderiam dar conta dessa tarefa.
“Porque o que foi colocado lá não é encenação , é um grande negócio. Imagina o quanto não custou”, argumentou.
Marilene explicou que as instituições regionais não concorreram para relatar a conferência, em razão de desconhecimento do edital.
“Se soubéssemos, teríamos concorrido com a FGV e a USP para fazer esse relatório, que não deve sair barato”, reafirmou.
Ela revelou que só soube do edital dentro do CDESS, como parte de um dos núcleos que levou ao G20 debate da descarbonização.
Uma fraude
O poeta e escritor Aldisio Filgueiras entende que o governo brasileiro está perdendo para o crime organizado, porque ainda está na era analógica, enquanto os criminosos de dentro e fora do estado estão na era digital.
A comparação mostra, para ele, a sobreposição dos interesses dos conglomerados econômicos aos das regiões mais pobres do mundo.
“O que está ocorrendo, pelos fatos trazidos pela Marilene, é que essa COP-30 realmente é uma fraude. Ela existe como todas as outras anteriores: para legitimar o crime . Não tem outro propósito, a própria estrutura de realização dessa COP deixa claro quem é que deve decidir, quem é que vai decidir, quem vai ficar lá embaixo e quem vai lá para cima”, critica o poeta.
Pesquisadores excluídos
Para a professora aposentada da Ufam Isabel Valle, os fatos apresentados pela professora Marilene mostram que, realmente, os pesquisadores da Amazônia foram excluídos.
“Quando se fala, por exemplo, desses institutos que foram criados à revelia das instituições locais, eles simplesmente viram às costas para o que é produzido aqui. E é uma literatura, um conhecimento extremamente vasto, que não data dos anos 2000. Tem décadas e décadas que vem sendo produzido”.
Ela se referia à fala da palestrante sobre a criação, muito antes da COP-30, de empresas prestadoras de serviços ambientais, sociais e outros, muito antes das definição dos recursos que podem vir dos resultados da COP-30.
Isabel Valle sugeriu que “deveríamos” adotar estratégias para não sermos apenas partes de um movimento que é apenas um espetáculo. “A COP é um grande espetáculo de nível planetário, não tenho dúvida disso”, disse.
Ela lembrou que os jornalistas estarão na COP-30 não apenas para divulgar o que os diplomatas haverão de decidir, mas também para fotografar os protestos que ocorrerão fora do salão desse palco.
Encenação
A também professora da Ufam Elenise Scherer concorda que os amazônidas devem se organizar para participar como massa crítica dessa “grande encenação”, para demonstrar que a representatividade da Amazônia está excluída da COP-30.
O pesquisador e ensaísta Renan Freitas Pinto observa que o fato de a COP-30 acontecer em uma metrópole da Amazônia, está sendo entendida por seus organizadores como se isso justificasse a presença da Amazônia no evento.
Sujeito da sua história
“Na verdade, a Amazonia participa, porém, não como sujeito da sua história, mas como objeto. Ou seja, é como se o evento localizado em Belém fosse o suficiente para justificar e até implicar numa pretensa participação”, afirmou.
Três mil indígenas
Socorro Papoula, militante social, anunciou que a Cúpula dos Povos, que reúne 439 organizações do movimento popular, organiza uma caravana para permanecer em Belém ao menos por cinco dias, com aos menos 15 mil militantes. Três mil indígenas já confirmaram presença nessa mobilização.
“A nossa proposta é protestar mesmo, porque precisamos dizer não a esse pacote que vem aí, porque nós é que conhecemos o nosso território, nós é que moramos na Amazônia, nos é que sabemos o que passamos aqui”, pontuou.
Socorro Papoula, militante social
Quem mediou o debate foi a coordenadora editorial da Valer, Neiza Teixeira, confirmou a continuidade da Roda de Conversa, com enfoque em temas amazônicos para COP-30.
“Devemos mesmo acompanhar os debates, para sabermos o que será feito de nós aqui [na Amazônia], no sentido lógico e de humanidade. Penso que a grande questão é esta: o que será feito de nós na condição de humanidade?”, perguntou a filósofa.
Fotos: Wilson Nogueira/especial para o BNC Amazonas