O livro “Boi Garantido de Lindolfo”, de Démontverde e João Batista Monteverde, é uma fonte importante e necessária para a compreensão das tensões entre culturas tradicionais, de raiz, e as mudanças que elas sofrem por pressão do mercado – modernidade.
Historicamente, a força mais violenta tem sido a do capital, manifestada no espetáculo midiático.
É por isso que os livros, sejam eles canonizados ou não, são indispensáveis aos estudos dos fenômenos culturais.
Os dois autores escrevem do e sobre o chão que conhecem plenamente. Dé e João Batista são neto e filho, respectivamente, do poeta e versador Lindolfo Monteverde, fundador do boi-bumbá Garantido.
A escrita é o meio que eles escolheram para revelar a história do boi-bumbá Garantido e do seu fundador. Assim, são escritores e testemunhas ao mesmo tempo.
A narrativa dos Monteverde ultrapassa as fronteiras de Parintins, assim como ocorre com o festival folclórico, protagonizado por Garantido e Caprichos, hoje conhecido no Brasil e no exterior.
Uma das janelas pela qual podemos enxergar o passado, a raiz dessa brincadeira, é a observação do vocabulário que seus brincantes utilizavam ontem e utilizam hoje. Novas palavras surgiram para anunciar novos tempos em detrimento daquelas que reafirmavam a memória ancestral.
O apagamento é ideológico e se propõe a varrer palavras e outros recursos de linguagem que favorecem à exclusão do falar, pensar e agir diferente não usual na língua padrão – ou língua do patrão, que expressa o falar do branco europeu, o invasor.
Os exemplos são muitos se comparados o vocabulário corrente na brincadeira e o que surgiu partir do festival, em 1965.
A começar pela substituição do nome do lugar onde nasceu o boi. O terreiro se transformou em curral. Essa mudança se verificou quando os bois-bumbás passaram a ser frequentados por pessoas das elites locais – funcionários públicos, comerciantes de gado – a maioria, devota da fé cristã.
O terreiro é o lugar do batuque, da cultura afro-indígena, na qual se inclui a diversidade religiosa de cultos a entes da natureza. Logo, o terreiro constitui o espaço dos negros, dos caboclos (índios sequestrados pelo colonizador), dos quilombolas, negros fugiram do martírio para lugares mais segundo, longe dos seus algozes.
O curral, por sua vez, está no território do gado e representa um bem do mercado capitalista, o chamado agente da cultura civilizatória. Faz parte da casa grande, morada do dono da fazenda.
Das trinta toadas do mestre Lindolfo publicadas por Dé e João Batista, quatro se referem ao terreiro como espaço coletivo, onde se realizam os ritos que homenageiam o boi. Não há citação da palavra curral.
VERSOS DE TOADAS
Respeito
[…] Quero respeito no terreiro
Em que eu brincar
Terreiro
Eu cheguei pra brincar
Boi no terreiro […]
Morena bela
Acorda morena bela vem ver
O meu boi, serenando no terreiro […]
Silêncio
Já chegou no terreiro
Meu povo presta atenção […]
Fez-se de tudo, também, para apagar a homenagem dos antigos moradores do entorno do terreiro do Garantido à senhora Alexandrina Monteverde da Silva, descendente de reis e rainhas africanas, mãe de Lindolfo Monteverde.
Esse reduto da cidade desde há muito tempo chama-se Baixa da Xanda e não Baixa de São José, referência ao bairro, que poderia se chamar, também, bairro Baixa da Xanda.
A quem interessa essas trocas?
O mais estranho é que o Garantido, desde que se transformou em agremiação recreativa, incentiva essa manipulação, por intermédio das suas toadas, a principal fonte de divulgação massiva da boi-bumbá parintinense.
Aliás, a toada que antes se chamava canção. A toada é uma linha melódica da canção e não a canção, termo que seria mais adequado, inclusive, às composições de hoje.
“A Baixa da Xanda está para o Garantido assim como o Pelourinho está para Bahia”, exalta o prefácio da obra.
Outra palavra recuperada pelo livro é assistência, substituída primeiro por torcida, influência dos frequentadores dos estados de futebol, depois por galera, referência aos habituês de galerias de comércio e entretenimento, que sequer existem em Parintins.
O livro rebate ainda a recente tentativa de se atribuir a presença do coração na desta do Garantido à sugestão de uma ilustre e histórica torcedora.
“Meu filho está muito bonito mesmo, esse é o único boi que tu vai fazer com esse símbolo, quero que faças testa do meu boi Garantido o mesmo que fizeste nesse boi, com um detalhe, faz o coração vermelho”.
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Esse diálogo, segundo os autores, ocorreu entre Lindolfo e seu filho Antônio, que confeccionava boi de pano para comunidades rurais parintinenses.
O livro foi publicado em 2003, mas permaneceu por alguns anos na gaveta, à espera de editor. Lá se vão mais de vinte anos.
E aí se seguem as instigações e provocações, com o propósito de tirar a poeira que dificulta o reconhecimento da história das populações tradicionais e originárias, relegada à escrita através do olhar do invasor.
Se as culturas são dinâmicas, elas devem se relacionar em uma dinâmica equilibrada, sem sobreporem umas às outras. Senão, o processo de inclusão deixa de ser inclusivo para ser exclusivo: “Eu te aceito, desde que aceites a minha fé e as minhas convicções”.
Como se pode constatar, a obra de Dé e João Batista, além de ser uma leitura prazerosa para iniciados e iniciantes, é, também, um campo de pesquisa fértil para olhares aguçados em conhecer as festas populares por meio dos seus protagonistas de raiz.
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DÉMONTEVERDE, MONTEVERDE, João Batista. Boi Garantido de Lindolfo. Manaus: Edua, Edições Governo do Estado do Amazonas; 2003.
Fotos: divulgação