Margarida lança livro que descobre Manaus por mãos artesãs

A narrativa conduz o leitor uma visão privilegiada do passado recente da cidade, com assento na janela do ônibus feito por Damasceno

Livro Margarida Campos

Neuton Correa

Publicado em: 09/04/2024 às 20:02 | Atualizado em: 09/04/2024 às 20:02

Nas veias de João Damasceno e Lola – ele construtor de ônibus de madeira – corre a história de Manaus (AM) nos anos que vão de 1940 e 1969. No entremeio, realizações e frustrações com os rumos da modernidade.

Quem narra a trajetória do casal é a enfermeira e militante política Margarida Campos. Ela faz isso no livro Estação radiant (Valer). A obra foi lançada hoje, às 19h, na galeria do Instituto Cultural Brasil Estados Unidos (ICBEU), na avenida Joaquim Nabuco, 1286, Centro.

Margarida toma como mote a história de seus pais. Assim apresenta a Manaus que esteve na vanguarda dos efeitos da modernidade nos trópicos, com serviços e equipamentos públicos que proporcionavam qualidade de vida ao menos parte dos seus habitantes.

O tempo

A narrativa conduz o leitor uma visão privilegiada do passado recente da cidade, com assento na janela do ônibus feito por Damasceno, sem perder a perspectiva de presente e futuro.

Trata-se, portanto, de uma obra importante e necessária para a compreensão da história de Manaus por meio da memória no espaço e no tempo.

Vivência

A própria autora explica que não se filia a gêneros literários. Porém é fiel à memória marcada pela vivência no passado, com repercussão no presente e, certamente, no futuro.

“[…] é um reflexo de como penso, sinto, falo e exerço a crítica social, enfim, de como esses acontecimentos desse arquivo histórico afetivo foram elaborados pelos meus sentidos, sem preocupação com o politicamente correto […]”,

assina autora na apresentação da obra.

Assim, a escrita de Margarida Campos se apresenta ao universo de leitores e leitoras sem distinção entre iniciantes e iniciados. A preocupação da autora é abrigar o máximo de pessoas nesse ônibus cujo percurso contempla a vivência de uma época marcante da vida manauara.

Estação Radiante é, por isso, um convite para os leitores

“[…] descobrirem que Manaus experimentou os avanços no passado, como detentora de equipamentos sociais modernos, implantados com o aporte da tecnologia moderna que aqui se instalou no fausto da economia da borracha [..]”,

assinala a escritora.

O poeta e membro da Academia Amazonense de Letras (AAL) Aldisio Filgueiras ao comentar a obra indica que Margarida Campos “se distancia de certo memorialismo nostálgico e saudosista, que só testemunha a importância de quem acredita que “a vida é assim mesmo, foi e sempre será, e põe tudo nas mãos de Deus, porque é covarde demais para assumir a responsabilidade de fazer da sua própria voz a sua vez e voto”.

Histórias de vida

Para o crítico de literatura e arte Tenório Telles, também membro da AAL, o que singulariza a obra de Margarida Campos são a atmosfera, as histórias de vida, os personagens desterrados dos escombros da história e o tom de voz expresso pela autora.

Telles entende que o mais surpreendente em Estação radiant é a descoberta de parte significa da memória de Manaus por meio da história do mestre Damasceno e seus ônibus de madeira.

Trechos

João Damasceno e Lola
“João Damasceno dos Santos era um negro, alto. Gostava imensamente da vida e dos seus doces e perigosos prazeres: bebida, jogos, festas e noitadas. Simplicidade, humor e desprendimento eram responsáveis pela sua capacidade de fazer preservar amigos. Viver lhe bastava, de nada fazia questão, tudo mais era saldo”.

Resumia seu estilo de mantra “nasci nu e estou vestido”.

“Essa filosofia de vida, no entanto, não o fazia uma pessoa acomodada e fraca; ao contrário, era produtivo e empreendedor”.

“A prova disso é que, mesmo sendo negro, pobre, e todo seu estudo se resumia em ler, escrever pouco e fazer contas, de aprendiz chegou a ser um grande marceneiro e proprietário de uma oficina bem-sucedida na fabricação de móveis finos e esquadrias de madeira, antes de se especializar e concentrar toda a sua atividade na construção de carrocerias de ônibus, caminhão e camionetas”.

“Ao conhecer dona Leonor, Lola, como todos a chamavam, em encontros casuais no ir e vir do trabalho, e na ’11 brilhantes’, clube popular localizado no bairro da Cachoeirinha, famoso por seus bailes, Damasceno se encanta por aquela moça branca, tipo galega, filha de pai português e mãe cearense.
O encanto foi recíproco. Não demorou muito, por volta dos anos finais da década de 1930, ele aos 25 anos e ela aos 20, decidiram juntar os trapos, carências e carinhos, cansados da solidão que padeciam desde que perderam os pais, ainda crianças, e foram criados ppor estranhos. Apaixonado e desejosos de terem a própria família, partiram em busca de um lugar para se instalar na cidade espaçosa e de contornos próximos, como era Manaus no final da década de 1930”.