Série DIÁRIO DE VIAGEM | A santidade suave e bela da Virgem do Rosário

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 12/05/2017 às 15:26 | Atualizado em: 12/05/2017 às 15:28

Por Thomaz Antonio Barbosa

 

“Nossa Senhora de Fátima, 100 anos entre nós!”

Sábado, 18 de julho de 2015, cidade do Porto, Portugal. Acordei cedo, sob o silêncio da Foz do Douro, tomei um banho de mar, um café na avenida do Brasil e fui ver a santa.

Peguei uma rota diferente, um caminho de dentro, pelo jardim botânico, na linha 206 até o centro. Cada viagem aqui é um tour. Esse percurso passa pelo mosteiro de São Bento e a torre dos Clérigos.

De  imediato, saímos cortando o bucólico e belo sítio de  Serralves, com suas ruas tomadas de flores. Mais adiante, a poética e amórfica Casa da Música, insurgente no conjunto, me recepciona na Boa Vista, no portal do centro.

Por qualquer caminho, o Porto é encantador.

É uma cidade de férias, onde as pessoas, nos intervalos, visitam o emprego e voltam correndo para casa. Era meu último sábado em Portugal, tinha que ir à cidade de Fátima beijar os pés da santa, pois no decorrer da semana o tempo ficaria imprensado demais e eu ainda precisava encontrar o ponto de partida da condução.

Desci nos Aliados, andei até a estação de São Bento. Meu destino era a garagem do Atlântico, e de lá tomaria o ônibus para Nossa Senhora de Fátima.

De início foi difícil encontrar, pela precariedade de informação. No setor de informações ao turista, em São Bento, o rapaz virou o mapa de ponta-cabeça, me deu duas opções “possíveis” e, quando isso acontecer, opte pela mais improvável.

 

 

Na rua não ouse perguntar nada a ninguém. Se pegar um táxi, não esqueça que o chofer é o dono do carro. É bom lembrar que no quesito informar os portugueses são de uma gentileza incompreensível e de um pragmatismo que atormenta.

Na garagem do Atlântico, o atendente do guichê dispôs um panfleto, disse-me “tudo que o senhor precisa está aí”, sobre hora, local e preço.

Quando me aproximei dos motoristas no pátio, perguntei a um deles, meio idoso, mediano, gordo, de bigode, qual daqueles ônibus nos levaria. Ele pegou meu bilhete olhou, investigou com cautela e disse: “Ainda falta meia hora”. Virou de costas e continuou a conversar com os amigos. E eu continuei sem saber em qual autocarro viajaria.

Sairíamos às 14h e faltavam exatos 25 minutos. Durante todo esse tempo enfrentei a difícil convivência com ciganas pedindo que lhe paguem café ou um pequeno almoço.

Almocei pescadas à Braga em uma cantina bem na saída da garagem do Atlântico, onde o dono do boteco, como todo e qualquer cidadão do universo, conhecia o fundo das calças do meu país, incluindo a nossa dependência econômica, o potencial de consumo e a incompetência político-administrativa.

Era um jovem maduro que, como os demais portugueses, se torna visível a nostalgia no olhar quando o assunto é o Brasil.

Extremamente simpático, enquanto tirava a conta e o troco, dissecou em poucas palavras as vísceras de Portugal, desencantado com a cura do cancro por meio de um antídoto que lhe consome, sem saber qual o pior, se o remédio ou a doença.

A viagem começou às 14h; eu estaria de volta às 19h30. O ônibus é uma delícia; o trajeto, um colosso.

Logo no início vi uma igreja sobre uma serra alta, românica, poética. A clareira no meio dos pinheiros era suficiente para ver a fachada, a torre e os pináculos. Eu não sei o nome, nem o santo padroeiro, mas é coisa de Deus. O lugar era majestoso, certamente a inspiração também.

 

 

E a estrada cumpria o seu papel de me levar ao lugar onde os pastores receberam a visita da Virgem do Rosário.

Chegando ao terminal de Fátima, claro, era só seguir a procissão. Mas, para desencargo de consciência, perguntei a uma senhora o caminho; então, ela me mostrou exatamente o cortejo adiante.

A cidade é suave e bela, aparentemente bem mais jovem que Porto e Santiago. Tudo é muito claro em Fátima, e uma sensação de pureza e paz permeia seus hemisférios, em uma lógica inexplicável. É sutil, mas dilacerante a ternura nos olhares, nos pontos, nos monumentos, como se aqui se desse o encontro definitivo da terra com o firmamento.

Há uma garrafeira extremamente linda bem na chegada, quando se sai da rodoviária, de uma serenidade acolhedora.

Entrei, fui atendido com uma delicadeza imaculada, comprei uma “lágrima” de 50ml, mais um souvenir.

As mulheres portuguesas são tão santas quanto as cidades. São elas que personificam essa aura boa, de coisas celestiais, o que me remete ao Brasil, às suas padroeiras, à alma feminina da crença, à cumplicidade com o mito.

E são muitas as santas a se cultuar, as rezas a se fazer, os desejos, os segredos a se contar às nossas virgens protetoras.

 

 

Segui a multidão, guardando o vinho no bornal como se pudesse também guardar uma gota do sorriso de uma das tantas mulheres santificadas desse lugar.

De longe ouvi os sons da pregação. Era uma missa campal no paço onde o pregador nesse momento falava de casamento. Ele dizia que é muito difícil viver para amar o outro. E continuou dizendo que ninguém reza pelo seu país, que é mais fácil falar mal, mais cômodo criticar. Nessa hora fui surpreendido pela estátua de João Paulo II às minhas costas. Um homem que amou o mundo, amou os jovens e, com sua didática, redesenhou o planeta.

João Paulo II deu sentido à minha juventude, talvez me ensinou a sonhar. Eu chorei nessa hora porque eu amo o meu país e as coisas que critico estão relacionadas ao que poderia ser feito. Porém, não fora por desrespeito ao povo e à pátria, eu morreria pelo Brasil.

 

 

Também não imaginava cruzar com sua santidade Karol Woytila assim de súbito, enturvar minhas memórias e ver que o tempo passa. Parece que foi ontem, mas o papa da juventude reside em um passado próximo, irretornável. À minha direita, um crucifixo, a Cruz Alta apontava para o céu.

Batia uma brisa plácida, em um dia de verão europeu intenso, mesmo assim o vento entrava no meu corpo. Parecia até que o mar era próximo, mas seriam as águas do batismo a me refazer, as águas da Amazônia que me revigoram.

O firmamento se conjuga com o oceano e as correntes viram nuvens, mas tudo estava calmo, com um céu limpo e azul.

O mundo se harmoniza em Fátima.

Na estátua de João Paulo II, ao lado, tem uma vela que não se apaga e acho que não vai se apagar. Tenho certeza que jamais irá se apagar.

E quando se está embaixo do crucifixo, da Cruz Alta, você é obrigado a olhar para cima. Metafórico.

À medida que me aproximo da Catedral do Rosário vai aumentando o cheiro de vela queimando, de parafina derretida. E essa experiência antropológica nos dá uma dimensão de paraíso e de purgatório, enraizada na alma da gente desde criança.

E deixo me envolver pela minha crença, por um Deus que conheci ainda menino nas desobrigas, nas igrejinhas, nos terços, nos arraiais e nas quermesses dos beiradões da Amazônia, em meio aos festejos dos santos que enxugam as lágrimas da gente.

E o fogo vai queimando, mas não arde, suaviza.

 

 

Para ver o túmulo dos pastores precisei fazer uma volta completa no templo, pois estava em reforma. Havia muita gente acampada nos arredores, passei pela casa dos jovens, muito bem guardada por frei Nuno, um timorino a serviço de Deus na Europa.

Este Santuário fica localizado na Cova da Iria, um lugar mágico onde a Virgem do Rosário teria aparecido para três crianças. Jacinta, Francisco e Lúcia viram a santa pela primeira vez em 13 de maio de 1917, e a última em 13 de outubro seguinte, com cerca de 70 mil expectadores. Um milagre no céu de Portugal para coroar o mundo de graça e de mistérios.

A santa teria contado três segredos. Na verdade, um conjunto de revelações, em partes, alegadamente aos pastores.

O primeiro seria a visão do inferno; o segundo, a conversão da Rússia; e o terceiro, um possível papa cambaleante, os mártires, um morticínio, uma batalha final e o clamor por penitência.

Por meio das palavras de Lúcia o poder de revelar o terceiro enigma é passado diretamente para a igreja.  Sendo fato o que se diz ou o que se conspira, de certo é que tem mais mistério nas interpretações do que nas aparições da virgem. Porém, o fato ainda atemoriza a humanidade.

Lúcia seguiu vocação religiosa; Francisco e Jacinta faleceram logo a seguir, acometidos de doenças implacáveis.  Ele, dois anos após, ela, três.

 

 

E o fogo queima de longe no santuário, mas não no rosto, e me paralisa.

Uma multidão faz o percurso de joelhos entre um templo e o outro. São pessoas de todas as partes do mundo que só estariam ali em virtude de uma fé que não se materializa e à grandeza de João Paulo II, o homem que modificou o mapa da terra, o velhinho da estátua em frente à igreja nova, a que eu visitaria agora.

A Igreja da Santíssima Trindade, a nova catedral, é esplêndida, circular como a terra, sem colunas, parece uma hóstia gigante suspensa no ar, um alimento inesgotável para a alma e para a lente dos fotógrafos.

A porta principal é de madeira e, a partir dela, tudo é branco, celestial, como tudo em Fátima. A virgem ainda jovem é retratada em uma estátua de mármore, no altar; o Filho, em um crucifixo de bronze.

De todos os pontos é possível ver os dois protagonizando aquele ambiente divinal, que nos transmite uma sensação de paraíso. Orei por alguns minutos, saí da terra por alguns instantes.

Eram seis da tarde, hora da Ave Maria e do Espírito Santo, quando saí do complexo, momento em que a virgem doce e pura mãe de Cristo vem conversar conosco.

Poderia ter ido à Gruta da Moeda, mas para um filho ausente basta para ver a face da mãe e tudo se conformiza.

São filhos do mundo inteiro a se encontrar ali, de muitas línguas, mas de um só coração, de um só sentimento, de uma mesma fé, a qual nos faz viver um dia após outro, que nos impõe sacrifícios; a testemunhar um amor que não se apaga, de Deus, de Maria e de Cristo.

Tomei um táxi até a rodoviária. Entrei no ônibus de volta tomado por um sentimento de alma renovada, calor gostoso, cansaço bom, um sol morno atrás das árvores, a 45 graus.

A nuance é bonita na estrada, luz e sombra o tempo todo. Eu passaria o dia inteiro viajando nesse trajeto, um veículo confortável, uma rodovia extremamente tranquila.

É indescritível a sensação de abrigo, ainda mais assim, no fim da tarde, inicio de noite, com sol. São duas horas a se percorrer até a cidade do Porto, mas que parecem 15 minutos.  Chegaria ainda com a luz do dia, com tempo para ver o mar na foz do Douro.

… Em 13 de maio de 2017 fará um século das aparições, 100 anos que peregrinos do mundo inteiro contemplam a face da Virgem do Rosário na Cova da Iria.

 

Fotos: Antônio Barbosa/cedidas ao BNC