Por Thomaz Antônio Barbosa*
Saí de Manaus para Portugal com a intenção de, entre tantas coisas, conhecer Barcelos, a terra do galo e do artesanato português que inspirou a nossa primeira capital.
Embora sendo histórica e muito bela, o motivo que me movia nessa visita era mesmo encontrar uma razão para a escolha do nome, a coincidência que, em meio a tantas outras cidades portuguesas, levou os colonizadores a batizar assim a vila de Mariuá que, a partir de então, sediaria o Governo do Estado do Amazonas.
Por que não Guimarães, onde surgiu Portugal, Lisboa, Coimbra, Bragança ou Porto? Não há registro histórico oficial do que motivou essa escolha.
Embora hoje distante do centro econômico do estado, Barcelos é de fundamental importância para a história do Amazonas e, por esta razão, é relevante se aventurar nessa, digamos, insólita investigação.
Já em terras portuguesas, alguém me disse que “se trata de uma cidade muito bela, mas em épocas do ano é muito quente”.
Soube também que se situava às margens de um rio, o que para mim era um bom começo. Apesar de não elucidar muita coisa, mas as conversas preliminares me deixavam otimista quanto ao possível resultado.
Como o destino de caminheiro é caminhar, lá vou eu atrás dessa cidade ribeirinha, quente como a nossa, localizada no distrito de Braga, na península ibérica, no norte de Portugal.
Meu roteiro começa na estação São Bento, na cidade do Porto, em uma integração para Campanhã, terminal rodoviário da região do Minho, saindo para Valença, a última cidade em solo português antes da Espanha.
Nesse intervalo está o meu alvo, Barcelos, de fortes tradições culturais e de um significado histórico muito grande para o seu país.
Meu objetivo era chegar ao rio que lhe banha e conhecer a catedral, conversar o máximo que pudesse, e o desafio era encontrar a pessoa certa.
O comboio saiu exatamente às 13h10 e chegou ao destino 45 minutos após, às 13h55, conforme marcado no tíquete de viagem.
Encontrei uma Barcelos interiorana, brejeira, bairrista e sorridente. O nome é avistado de longe, escrito em letras garrafais, na parede da rodoviária.
A cidade estava em festa, e no dia seguinte a seleção de futebol portuguesa decidiria a Copa da Uefa com a enfadonha e soberba equipe francesa.
Eu começo a caminhar pela avenida Alcides de Farias, reta e longa, com uma leve inclinação. Mais alguns quarteirões adiante está a igreja beneditina Nossa Senhora do Terço, construída em 1717, há exatos 300 anos. Um templo barroco, dedicado a São Bento, padroeiro da Europa.
Tudo em Portugal é contado nos azulejos e nessa igreja as homenagens estão na parede e também nas pinturas do teto. A festa seria no dia 11 de julho, segunda-feira, dois dias após a minha visita.
Seguindo caminho, também à direita está o largo de Santo Antônio dos Capuchinhos, com uma igreja franciscana linda e iluminada pelo sol do verão europeu, de um sábado esplendoroso, 9 de julho de 2016.
Não entrei no templo, pois meu tempo estava apertado. À esquerda, nesse trecho, se localiza a feira de artesanato, um dos símbolos de Portugal. Ela acontece todas as semanas, no largo do Hospital da Misericórdia, casa pertencente à paróquia de Nossa Senhora Maior, a padroeira da cidade.
Tradição é pouco. A feira de artesanato de Barcelos é realizada desde 1412, 88 anos antes do Brasil existir. Depois da lenda do galo, é o maior ícone da cidade.
Ao redor do local do evento tem painéis multicoloridos cercando toda a área, que representam cada uma das freguesias do concelho da cidade.
Segundo um morador, “a Galego de Santa Maria é a que melhor produz a figura galo”. A ave aparece em mil formas. Para onde se vira, o olhar se depara com a figura que conta a lenda miraculosa, que se tornou o símbolo de Portugal.
Barcelos é tão colorida quanto essa imagem, tão fantástica quanto a lenda. Pelo visto, a feira dita o ritmo do lugar e todas as quintas-feiras é apresentada aos frequentadores uma diversidade de artes e ofícios como olaria, bordados, tecelagem, cestaria, talha em madeira e forja do ferro.
Curioso que a tudo isso se misturam frutas, hortaliças e ovos caseiros que as senhoras compram logo cedinho, tudo fresco e novo como gostam as portuguesas. Como em toda cidade de interior, é a inspiradora dos poetas, escritores e artistas locais.
O Hospital da Misericórdia tem uma linearidade infinita e segue a extensão lateral da feira. Mudei o percurso, segui à esquerda na avenida da Liberdade, onde está a estátua emblemática e bela do bombeiro voluntário, carregando uma criança no colo.
Em cinco minutos cheguei ao templo do Bom Jesus da Cruz, no largo da Ponte Nova. Sua origem está relacionada ao aparecimento também milagroso de uma cruz de terra preta no lugar onde se realiza a secular feira de artesanato. Ali se construiu uma capela e dali em diante a tradição tomou conta.
A igreja do Senhor da Cruz é arredondada, muito clara, de granitos. Em Portugal tudo que reluz é ouro e o altar do Senhor da Cruz não foge à regra. Porém, o mais impressionante são os bancos de madeira, individuais e sem o espaldar.
É indescritível a suntuosidade do carrilhão, do dourado por toda parte e das formas.
Depois dos Jardins das Barrocas segui ruas e parei para fazer uma refeição rápida. Tarefa muito simples nessa terra, basta escolher uma tasca ou um café e ser bem servido.
Em Barcelos se pratica a culinária do norte, pratos tradicionais e de baixo custo, tipo bacalhau à Braga, polvo assado na brasa, rojões, pescada à minhota, papas de sarrabulhos, tripas e o “franguinho no espeto”.
Optei por algo mais prático. Pedi um bife, que nada mais é do que fígado bovino no pão, já que o nosso tradicional de carne vermelha nesse país se chama prego.
Vinho tem de diversos tipos. Barcelos está na região dos festejados vinhos verdes do Minho, mas viajante que se preza normalmente toma água e uma cola.
Um prato curioso para a terminologia brasileira é o arroz pica no chão, uma espécie de frango caipira com toucinho picado, cozidos com arroz, tudo junto.
Turistas adoram bacalhau assado na brasa ou a tradicionalíssima alheira de mirandela, um enchido português, reconhecido como uma das sete maravilhas do país, com certificação de “Especialidade Tradicional Garantida”. Mas, fígado no pão também tem a sua nobreza.
Segui pela rua Barjona de Freitas e depois a Duques de Bragança, até o quadrilátero da Matriz de Nossa Senhora Maior. Sai de frente para o rio Cávado, de onde eu estava, também à minha esquerda, no lugar mais alto, a igreja matriz e ao seu lado, à minha direita, o Paço dos Condes. Mais abaixo está a ponte Medieval, cruzando o rio Cávado, interligando a Barcelinhos, uma aldeia local, igualmente bela.
Bem, chegamos ao rio, onde normalmente tudo se conjuga em uma cidade ribeirinha. E aqui está ele, charmoso, da cor de esmeralda, com formações de rocha em seu leito.
O Cávado, na região que corta Barcelos, para quem nasceu no Amazonas, seria otimismo demais chamá-lo rio. Mas, na orla o vento é forte e sopra na direção da igreja matriz.
Gastei tempo a fotografar o conjunto. Assim como na Amazônia, essa cidade se formou em torno de sua padroeira. Restava subir a ladeira e entrar no templo.
Sua arquitetura é românica, com alguns traços góticos, arcos ogivais do século XIV, iguais aos encontrados na ponte Medieval.
O interior de Nossa Senhora Maior é composto por três naves e catorze painéis de azulejos, além das imagens de Nossa Senhora da Assunção e Senhora da Franqueira, onde o ouro da colônia predomina nos altares e nas imagens da corte.
A conversa que tive com o servo responsável não foi tão amistosa quanto o que cuida da Igreja do Terço. Para minha investigação, a toponímia do lugar não era o que mais queria.
Cortei caminho na volta pela rua de São Francisco, tomei um café no largo do Apoio, o primeiro existente na cidade, onde se ver um chafariz de águas límpidas, com um monumento ao centro. Puro charme e bucolismo.
Parei à sombra, no Historial Café, pedi um curto com um pastel de nata.
Segui de volta ainda não satisfeito. Tinha pouco mais de duas horas de estada e ainda era preciso investigar. Parei na Torre Medieval, cujo monumento recebeu vários nomes até os dias de hoje.
Está localizada no largo da Ponta Nova, e assim pode-se também chamar, no mesmo conjunto da igreja do Senhor da Cruz. Aqui fechei o círculo central.
A construção é uma espécie de núcleo de fortificação, que segundo os curadores fora uma estação de passagem, uma muralha e até uma prisão. Assim como foi trocando de nomes, também foi de utilidade. Abriga agora o museu do galo. Os souvenirs custam entre 1 a 500 euros, em média, e estão espalhados por todo o interior da edificação.
Fui até o cimo, de onde se tem uma visão panorâmica extraordinária de toda a cidade e fiz boas fotografias.
De olho no relógio, administrando bem o tempo, parei na feira do livro, que tem um lema curioso e sonoro para os brasileiros: “Barcelos, uma cidade educadora”. Entre a colônia e a corte nenhuma semelhança é mera coincidência.
Meu caminho se encerrava ali, com a certeza de que a Barcelos portuguesa é ribeirinha, do norte de seu país, de clima quente e que se formou ao redor da matriz. Era o que eu tinha da viagem, o que levava de volta para casa.
Porém, já a caminho da rodoviária, passando pela Igreja do Terço novamente, encontrei Francisco de Souza, o servo que me atendera na ida, contemplando a rua.
Ele me cumprimentou e disse para um indivíduo que passava, se referindo a mim: “Este é brasileiro”. E o homem abriu um sorriso e me parou. Era esguio, alto, espirituoso e falante.
E foi logo me dizendo: “Portugal fez o maior invento da humanidade!”. E antes de eu respirar, ele complementou, de uma forma irônica e maliciosa: “Inventou a mulatinha”. E não me soltou mais o braço.
De fato, a mulata é uma invenção dos portugueses. Eles, e somente eles, miscigenaram a raça.
Eu, já com a hora esgotada, não tive chance de me defender e o cidadão foi se antecipando em comentários, e de repente ele me aguçou a curiosidade com uma declaração fantástica: “Esta cidade é de muita importância histórica para Portugal. Foi a primeira a se levantar na guerra da emancipação”.
Dom Álvaro, o português falante e espirituoso, acabava de dizer a frase que faltava. Eureca!
Barcelos significa terra ribeirinha e plana. No século XII, Dom Afonso Henriques lhe concedeu a carta-foral; por meio de Dom Dinis, a cidade se transforma no primeiro condado português, elevado a ducado por Dom Sebastião, passando a pertencer à casa de Bragança.
Estava, então, andando eu na cidade que remete à emancipação de Portugal do reino de Espanha, procurando coincidências com a que marca a do Amazonas em relação ao estado do Pará.
Justificava-se, assim, a razão da nossa Mariuá passar a se chamar Barcelos.
No dia seguinte acordei tarde e fui tomar um banho de mar nas praias do Porto. A cidade estava apreensiva e as bandeiras timidamente enfeitavam as janelas e os pórticos no calçadão da avenida do Brasil.
Comi um bacalhau à Braga, com vinhos verdes maduros, na Esplanada do Rio de Janeiro, vendo o mar espantar turistas. À noite, Portugal venceu a França.
*O autor é especialista em contabilidade gerencial e controladoria, MBA em marketing, mestrando em ciências empresariais na Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal
Fotos: Antônio Barbosa, cedidas gratuitamente ao BNC